Artigos

O papel do médico veterinário nos exames ante e post mortem dos animais de abate e a inspeção com base em risco

Publicado em
por
Compartilhe

Por Carla Susana Rodrigues¹ e Ana Lúcia Viana²
 

A inspeção sanitária de produtos de origem animal tem como objetivos a preservação da saúde pública, por meio da fiscalização com foco na inocuidade dos alimentos; a preservação dos interesses do consumidor, que se dá pela fiscalização da identidade e qualidade dos produtos; e a preservação da saúde animal, por ser um importante ponto de vigilância da sanidade dos rebanhos.

A atuação do médico veterinário na inspeção ante e post mortem dos animais das diversas espécies de açougue evita que produtos de origem animal que possam colocar em risco a saúde do consumidor cheguem a sua mesa.

A presença do médico veterinário antes das atividades de abate é imprescindível para o diagnóstico de enfermidades. Esse diagnóstico é norteado pelo comportamento, aspectos e sinais clínicos identificados nos animais, podendo ainda requerer exames laboratoriais para a sua confirmação. Também é imprescindível a sua presença durante as atividades de abate, para que possa ocorrer a correta destinação das carcaças, suas partes e de seus órgãos. Para este acompanhamento, o médico veterinário considera o diagnóstico macroscópico e imediato, baseado nas lesões e nas anormalidades identificadas nas linhas de inspeção.

A dinâmica desse processo de inspeção exige atuação imediata do médico veterinário. Esta atuação evita o risco de disseminação de um agente infeccioso, a morte do animal sem que tenham sido observados os sinais clínicos indicativos de doença de notificação obrigatória, alteração de lesões, podendo dificultar o diagnóstico, e os prejuízos ao bem-estar animal.

As técnicas de inspeção post mortem de carcaças, suas partes e de seus órgãos foram descritas em 1892, por Robert von Ostertag, alemão formado em medicina e em medicina veterinária, considerado o pai da inspeção de carnes. O sistema de inspeção desenvolvido por Ostertag tornou-se um padrão mundial e foi utilizado como referência para a legislação brasileira de inspeção de carnes, publicada pela primeira vez em 1915.

No Brasil, durante a Primeira Guerra Mundial, as charqueadas começaram a ser substituídas por abatedouros para fabricação de carne enlatada que iriam alimentar as tropas em batalha pela Europa. Inicialmente, a inspeção nesses abatedouros foi realizada por médicos estrangeiros, que aos poucos foram substituídos por médicos veterinários das primeiras turmas formadas no país.

Nos idos de 1950, cabia ao médico veterinário do Serviço de Inspeção Federal (SIF) e à equipe de inspeção o controle de todo o processo produtivo do estabelecimento, não apenas nas etapas de abate, identificando falhas no processo, e determinando qual ação corretiva deveria ser adotada. Os registros eram feitos nos relatórios de ocorrência e providências. Com isso, o médico veterinário – conhecido como inspetor oficial – atuava em todo  o processo produtivo, sendo  corresponsável por este. Tal postura foi importante à época porque, naquele momento, ainda eram poucos os médicos veterinários qualificados para atuar nos abatedouros no Brasil, contratados por estes, e era papel do Estado fomentar as boas práticas e controlar a qualidade da produção.

Desde o final do século XIX até hoje, a inspeção dos animais abatidos passou por poucas mudanças e é realizada mantendo os mesmos princípios básicos, utilizando as premissas de exames de visualização, palpação, olfação e incisão. No entanto, o sistema de inspeção tradicional de carnes vem enfrentando desafios para detectar perigos emergentes e re-emergentes tais como Campylobacter, Salmonella, Escherichia coli, produtora de Shiga toxina, e Listeria monocytogenes. Esses patógenos, em geral, não provocam lesões ou anormalidades (sinais clínicos) que possam ser observados nos animais vivos, nem em suas carcaças, partes ou em órgãos, capazes de permitir o seu diagnóstico nas linhas de inspeção.

Somado a este desafio, temos a globalização do comércio de alimentos, as mudanças climáticas, as alterações na ecologia microbiana e o aumento de resistência dos patógenos aos antimicrobianos. Estes novos fatores estão interligados e podem influenciar na inocuidade das carnes e dos produtos cárneos ofertados à população.

Em paralelo à percepção dos perigos emergentes, desde o início dos anos 2000, na rotina de trabalho de inspeção nos abatedouros, as lesões ou anormalidades que eram detectadas no exame post mortem dos animais indicavam que havia ocorrido melhorias no controle sanitário dos rebanhos, e incitavam questões quanto  à realização de procedimentos para identificação de lesões e doenças que já não faziam parte da realidade. Doenças como cisticercose em suínos, por exemplo, um achado comum nos animais abatidos na década de 1950, tornaram-se cada vez mais raras em animais criados em um sistema de produção industrial. Outra constatação se deu nos abatedouros de aves. O desenvolvimento da avicultura industrial teve reflexo na redução das condenações de carcaças e vísceras por doenças infecciosas. Por outro lado, observamos aumento de condenações por defeitos de qualidade causados por falhas tecnológicas, sem risco à saúde pública. 

Para além disso, e ainda atuando sob os mesmos princípios da inspeção tradicional desenvolvida por Ostertag, vivenciamos o aumento da produção de carnes e a necessidade de produção de proteína animal em escala. Com isso, a inspeção industrial e sanitária precisa também evoluir e acompanhar as mudanças da indústria. 

O desenvolvimento do parque industrial brasileiro, com aumento do número de estabelecimentos, o crescimento da produção de proteína animal e das exportações brasileiras, pressionou o serviço de inspeção na execução de suas atribuições, seja na inspeção ante e post mortem, na verificação oficial, na certificação sanitária, nos controles laboratoriais e demais atividades. Com isso, tornou-se necessário otimizar a atuação dos médicos veterinários, delimitando-a para a realização de atividades essenciais de certificação sanitária, por ser um requisito preponderante para a manutenção de mercados para exportação da carne brasileira, e demais atividades que demandam poder de polícia. Estas atividades requerem habilidades desenvolvidas durante sua formação acadêmica e, portanto, privativas da profissão. Nesse ponto, cumpre-nos destacar a importância de manter a atuação do médico veterinário e da equipe de inspeção, mesmo diante de situações de emergências sanitárias, como ocorreu no enfrentamento aos desafios impostos pela pandemia por Covid-19, quando esses profissionais permaneceram nos abatedouros para assegurar o fornecimento de alimentos seguros.

A necessidade de evolução dos serviços de inspeção  é uma questão global. Em 2008, a Organização das Nações Unidas para a Alimentação e a Agricultura (FAO) publicou um manual de inspeção, com base em risco, com o objetivo de auxiliar os países a fortalecerem seus sistemas de inspeção, atuando com foco naquilo que representa risco à saúde pública e otimizando o uso dos recursos humanos e financeiros. Em 2019, a FAO publicou um guia técnico de princípios para aplicação na inspeção de carnes, com base em risco. 

Na legislação brasileira, a inspeção com base em risco foi prevista no Decreto nº 9.013/2017, que estabeleceu o Regulamento de Inspeção Industrial e Sanitária de Produtos de Origem Animal (RIISPOA) e representa um marco na inspeção de produtos de origem animal. Seguindo essas diretrizes, cada vez mais se delimitam os pontos onde se faz necessária a intervenção do serviço de inspeção, mantendo a atuação nas etapas essenciais e indeléveis, unindo a cadeia produtiva e, assim, fortalecendo os princípios de qualidade do alimento do campo à mesa.

Atualmente, algumas das lesões ou anormalidades, observadas durante a inspeção post mortem, não indicam um potencial risco à saúde pública. No entanto,  os procedimentos de inspeção tradicional ainda demandam um conjunto numeroso de exames a serem realizados pelo serviço de inspeção para detectá-las. Por outro lado, os perigos emergentes à saúde do consumidor, em sua maioria, não provocam sinais em carcaças, partes ou em órgãos dos animais, que possam ser identificados nas linhas de inspeção.

Diante desta situação e do desafio que ela representa, e tendo como objetivo aprimorar os procedimentos de inspeção post mortem, o Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Dipoa) firmou parceria com a Empresa Brasileira de Agropecuária (Embrapa). Esta parceria tem como objetivo orientar a identificação e priorização  dos perigos emergentes e relevantes à saúde pública,  atribuídos à carne de aves e de suínos, sob orientação do desenvolvimento científico e da inovação tecnológica, observando as diretrizes da inspeção com base em risco. A partir dessa priorização, é possível avaliar a pertinência de cada exame realizado na inspeção post mortem. 

Por exemplo, no caso do abate de suínos, oriundos de sistema de produção industrial, não faz mais sentido realizar a pesquisa de cistos por meio de cortes nas carcaças, dada a baixíssima probabilidade de sua ocorrência. Adicionalmente, fazer cortes em linfonodos da cabeça, sem os devidos cuidados e em local não específico para esse procedimento, demonstrou aumentar a probabilidade de disseminação de salmonella. 

No caso do abate de aves, a informação sobre o status sanitário do lote, em relação aos patógenos Salmonella e Campylobacter, associado aos procedimentos operacionais para garantir a higiene do processo de abate, provou ser fundamental para o fornecimento de um produto seguro. 

Vale ressaltar que esta evolução vem sendo realizada de maneira gradual e sempre baseada em estudos científicos, mantendo a eficiência do serviço de inspeção, a confiança e o reconhecimento internacional que permitiram ao Brasil conquistar e manter importantes mercados para comercialização de carnes e produtos cárneos. 

De acordo com a Organização Mundial de Saúde (OMS), existem mais de 200 tipos de zoonoses – doenças infecciosas transmitidas dos animais para os seres humanos. É estimado que 60% das doenças infecciosas humanas são zoonoses, e dentre elas acredita-se que algumas possuem potencial para causar novas epidemias. 

No século V a.C., Hipócrates, considerado o pai da medicina, defendia a ideia de que a saúde pública estava ligada a um ambiente saudável. No século XIX, o médico alemão Rudolf Virchow defendia que não deveria haver divisórias entre a medicina humana e a medicina veterinária. O termo Saúde Única (One Health), proposto por organizações internacionais como OMS, FAO e OMSA (Organização Mundial da Saúde Animal), embora seja relativamente novo, possui conceito antigo, e demonstra a indissociabilidade entre a saúde humana, a saúde animal e o meio ambiente.

Nessa abordagem, acreditamos ser fundamental, no âmbito do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), a atuação integrada entre as áreas de saúde animal, fiscalização de produtos para alimentação animal e de medicamentos veterinários, laboratórios de diagnósticos e de análise de alimentos, e a inspeção de produtos de origem animal. 

Os avanços no controle de doenças e agentes infecciosos de potencial zoonótico na cadeia primária refletem diretamente nos controles a serem adotados nos estabelecimentos de abate. 

Ao avançar na aplicação do conceito de saúde única, será necessário cada vez mais avaliar dados, gerar informações, incluindo a correlação com dados de saúde pública. Será também necessário rever os procedimentos de inspeção ante e post mortem, mantendo a eficiência do serviço de inspeção e assegurando a inocuidade dos produtos de origem animal ofertados à população, que, invariavelmente passa pela discussão e aprimoramento da forma de atuação do médico veterinário.


¹ Carla Susana Rodrigues – Médica Veterinária DSc e auditora fiscal federal agropecuária. Atualmente ocupa o cargo de chefe da Divisão de Apoio Gerencial no Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal

² Ana Lúcia Viana – Médica Veterinária e auditor fiscal federal agropecuário. Atualmente ocupa o cargo de diretora no Departamento de Inspeção de Produtos de Origem Animal

Fonte: Revista da Defesa Agropecuária

*Os artigos publicados não traduzem a opinião do Anffa Sindical. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos temas sindicais e de refletir as diversas tendências do pensamento.

ANFFA Sindical é o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários
Setor Comercial Sul, Quadra 2, Bloco C, 4º andar, Ed. Jockey Club - 70.302-912 - Brasília, DF
(61)3224-0364 / (61) 3246-1599 / (61) 3968-6573 

Acompanhe nas Redes Sociais

Diretor de Comunicação e Relações Públicas:

Montemar Onishi
comunicacao@anffasindical.org.br

Jornalistas:

Juliana Procópio
jornalista@anffasindical.org.br

Júlia Silva
imprensa@anffasindical.org.br
Assessoria de Imprensa: FSB Comunicação
Shismênia Oliveira
(61) 99233 9131
shismenia.oliveira@fsb.com.br

Assessoria de Marketing: Angular Comunicação
Túlio Carvalho
(61) 98365 9548