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Indústria da carne faz lobby no governo para privatizar inspeção em frigoríficos

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Nos últimos dois anos, a indústria da carne tem atuado em Brasília para influenciar na regulamentação da Lei 14.515/2022. Batizado de “Lei do Autocontrole”, o texto estabelece regras para que empresas privadas cuidem por conta própria de seus processos produtivos.

No caso de frigoríficos, por exemplo, isso envolve a inspeção das condições de saúde dos animais, antes e depois do abate. Atualmente, a atividade é de responsabilidade do governo federal.

Ao longo do processo de regulamentação da lei, entidades setoriais da indústria da carne enviaram uma minuta de decreto ao Mapa (Ministério da Agricultura e Pecuária) e indicaram uma diretora e um gerente da JBS, maior processadora de proteína animal do mundo, para dois grupos de trabalho sobre mudanças na fiscalização em abatedouros.

A proposta serviu de ponto de partida para as discussões de um grupo de trabalho montado em Brasília, em abril de 2024. A indústria da proteína animal ficou com 12 assentos na comissão, contra quatro destinados ao governo federal e nenhum à sociedade civil.

Tanto a minuta quanto o grupo de trabalho abordavam uma polêmica autorização para que veterinários terceirizados, em contratos pagos pelos próprios frigoríficos, desempenhem atividades antes exclusivas de auditores fiscais federais agropecuários.

É o caso da inspeção dos animais para verificar eventuais sinais de maus tratos e doenças contagiosas, além de fraudes — como a injeção de água em peças de carne congeladas.

Em 2017, a operação Carne Fraca flagrou os maiores frigoríficos do Brasil vendendo carne adulterada e subornando auditores para fazerem vista grossa. Na época, o então ministro Blairo Maggi comentou o tema.

“Quando assumi o Mapa, também tinha a ideia de deixar a responsabilidade apenas com os frigoríficos. O tempo e a experiência da Operação Carne Fraca me mostraram que isso não é possível. Se o Estado sair lá de dentro, vai dar confusão. A presença do Estado ainda é necessária”, disse Maggi, um dos maiores produtores de soja do país.

Críticos da Lei do Autocontrole dizem que ela pode afrouxar o monitoramento público sobre os frigoríficos. Fontes ouvidas pela Repórter Brasil afirmam ainda que as empresas estariam impondo seu ponto de vista de forma desproporcional em um debate que deveria ser feito com toda a sociedade, por trazer consequências para a saúde pública.

A indústria, por sua vez, alega que tudo vem sendo feito com transparência, que a proposta não substitui nem esvazia o papel do Estado, e que as mudanças trarão eficiência administrativa.

A Lei do Autocontrole foi aprovada no apagar das luzes do governo Jair Bolsonaro, já sob fortes críticas de organizações, incluindo o Ministério Público do Trabalho, sindicatos, auditores fiscais federais e organizações de defesa dos consumidores e do bem-estar animal.

A legislação já está em vigor, mas muitos pontos têm lacunas que demandam regulamentação por meio de decretos, portarias e outros instrumentos.

Segundo o Ministério da Agricultura e Pecuária, dezenas de normas estão em discussão ou já foram aprovadas para definir os procedimentos decorrentes da Lei do Autocontrole.

O tema mais polêmico, a possibilidade de contratação de fiscais privados para executar tarefas antes exclusivas de agentes públicos, ainda não foi regulamentado.

“A lei foi uma encomenda do setor produtivo de origem animal, principalmente ABPA (Associação Brasileira de Proteína Animal) e Abiec (Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carnes)”, protesta Janus Pablo, presidente do sindicato dos auditores fiscais federais agropecuários, a Anffa. “E esse mesmo setor, após a aprovação da lei, continuou a pressão para a regulamentação”, completa.

O Ministério da Agricultura e as entidades contestam e se dizem guiados pelo interesse público. “Trata-se de um avanço necessário para garantir segurança alimentar à população brasileira e aos mais de 150 países que confiam na proteína animal produzida no Brasil”, contrapõe a ABPA.

“A segurança alimentar e a credibilidade do sistema de inspeção seguem como compromissos centrais do setor”, reforça a Abiec. A íntegra das respostas pode ser lida aqui.

A minuta de regulamentação da Lei do Autocontrole redigida pela Abiec e a ABPA foi enviada ao Ministério da Agricultura e Pecuária em março de 2024, quase 15 meses depois da sanção da Lei do Autocontrole. “Sempre tivemos suspeição de que os departamentos recebem minutas do setor, mas nunca obtivemos uma evidência”, observa Janus Pablo.

O documento foi obtido pela Repórter Brasil por meio de um pedido de Lei de Acesso à Informação e confirmado pela ABPA, que justificou o ato pela demora do Mapa em regulamentar a lei. “Foi uma contribuição técnica para colaborar com o avanço do processo, diante da morosidade observada”, explica a ABPA.

A minuta das entidades foi o ponto de partida para o grupo de trabalho instituído para regulamentar parte da legislação, montado em abril de 2024.

Organizações críticas às mudanças debatidas no grupo de trabalho, como entidades de defesa do bem-estar animal e dos direitos dos consumidores, ficaram de fora da composição.

O sindicato dos auditores fiscais agropecuários diz que chegou a solicitar sua inclusão no grupo, mas que não foi admitido.

Principal companhia do setor, a JBS não estava entre os convocados pelo Ministério da Agricultura para discussão das normas. Mas executivos da empresa ocuparam vagas destinadas à Abiec e à ABPA.

“Há fortes indícios de que a JBS se vale repetidamente de entidades de classe para promover seus interesses e influenciar políticas públicas”, critica Natália de Figueiredo, Gerente de Políticas Públicas da Proteção Animal Mundial no Brasil.

“Essa prática transfere o ônus do lobby institucional para associações setoriais, diluindo a responsabilidade direta da empresa e evitando desgaste reputacional. Mas oculta os verdadeiros interesses econômicos em jogo e dificulta a responsabilização em casos de conflito de interesses ou captura regulatória”, complementa.

A diretora de programas da Transparência Brasil, Marina Atoji concorda: “É grave porque há uma tendência a receber contribuições apenas de atores que não têm interesse necessariamente em fortalecer o controle e a fiscalização da cadeia produtiva”.

Em nota à Repórter Brasil, a ABPA informa que atua “de forma colaborativa, técnica e institucional” no debate sobre a Lei do Autocontrole, e que a legislação foi concebida “com ampla participação da sociedade civil, da administração pública e do Congresso Nacional”. Já a Abiec diz que é “praxe em processos dessa natureza” haver “contribuição técnica de entidades representativas, sempre sob coordenação do Ministério”.

A JBS, por sua vez, disse que “a composição dos grupos técnicos de trabalho foi definida pelo ministério, que solicitou indicações às associações”. “Os executivos da JBS foram indicados por já participarem de comitês temáticos nas respectivas associações, inclusive em posição de liderança”, acrescentou a empresa.

A minuta enviada pelas entidades ao Mapa em março de 2024 continha um capítulo inteiro dedicado ao detalhamento da contratação de agentes privados para atividades de inspeção em frigoríficos.

O trecho acabou suprimido do decreto final, mas voltou à pauta com a convocação do segundo Grupo de Trabalho, expressamente criado para regulamentar a contratação de fiscais privados.

“Foi uma frustração muito grande para o setor produtivo que o tema não tenha entrado no primeiro decreto. Naquele momento, eles já esperavam mudanças como a que estão propondo agora”, observa Janus Pablo, da Anffa. Uma pesquisa interna feita com auditores fiscais federais indicou que 91% dos servidores que atuam na inspeção entendem que haverá conflito de interesse se a contratação de fiscais privados se concretizar.

“É como colocar a raposa para tomar conta do galinheiro”, critica Artur Bueno de Camargo, presidente da CNTA, a confederação dos trabalhadores nas indústrias da alimentação — a entidade protocolou uma ação de inconstitucionalidade no STF (Supremo Tribunal Federal), pedindo a anulação da legislação. O processo está com o relator, ministro André Mendonça, e ainda não há uma decisão.

O decreto resultante deste segundo GT ainda não foi publicado. Porém, a minuta acordada entre os participantes do colegiado diz que a inspeção antes e depois da morte do animal, tarefa antes exclusiva de auditores fiscais federais, poderá ser executada por médicos veterinários terceirizados do Mapa, cedidos por prefeituras e governos estaduais, ou ainda por empresas prestadoras de serviços “contratadas pelos estabelecimentos que realizam o abate de animais”.

“É uma atividade muito sensível, que pode ter um impacto financeiro grande, porque o fiscal pode condenar uma carcaça ou até um lote todo, se detectar alguma irregularidade”, explica Janus Pablo, da Anffa. “Se o fiscal privado for rigoroso, ele poderá ser substituído a pedido do frigorífico”, acrescenta. A minuta veda a contratação direta de pessoas físicas pelos frigoríficos.

A ABPA entende que não haverá conflito de interesses na inspeção privada, uma vez que os agentes privados “atuarão subordinados tecnicamente aos auditores fiscais, preservando integralmente o poder decisório e o exercício da autoridade administrativa pelo Estado”.

Essa hipótese é contestada pelos auditores fiscais agropecuários. Eles alegam que não poderão atuar de forma permanente nos estabelecimentos fiscalizados, como ocorria até a edição da Lei do Autocontrole.

Com isso, a decisão de parar o abate, reduzir velocidade ou apontar irregularidades ficará apenas a cargo do fiscal privado. Ainda de acordo com o sindicato dos servidores públicos, os agentes privados serão mais vulneráveis a pressões das empresas — até porque terão seus salários pagos indiretamente pelos frigoríficos, que contratarão as empresas prestadoras de serviço.

“A tendência é que o auditor [do governo] saia da planta e fique supervisionando uma equipe muito grande, em mais de uma planta frigorífica. A situação será bem precária”, prevê Janus Pablo.

A pressão do sindicato por um debate ampliado sobre o tema surtiu efeito e o tema acabou submetido a uma consulta pública no site do ministério, com quase 3 mil contribuições. O sindicato espera agora que seja realizada uma audiência pública, “visto que muitos setores interessados não puderam participar nos grupos de trabalho”.

A Abiec disse que “considera legítima a realização de audiências públicas”, mas o Mapa não respondeu se o debate será realizado ou não. A ABPA disse que a proposta de fiscais privados nas plantas atuando sob a supervisão de servidores de carreira “reforça e valoriza a atuação dos auditores fiscais federais agropecuários”.

Nas duas portarias que convocaram os grupos de trabalho para debater a regulamentação da Lei do Autocontrole, o Ministério da Agricultura e Pecuária previu a participação de entidades do setor privado, mas não de empresas diretamente.

Entretanto, a Abiec indicou como sua representante Maria Emilia Santoro Raucci — em seu perfil do Linkedin, ela informa ser funcionária da JBS há mais de 20 anos. Já a ABPA nomeou Adriano Chalegh, gerente executivo jurídico no Grupo JBS, também segundo sua conta no Linkedin.

Em suas comunicações com a pasta, ambos utilizaram e-mails com endereços de domínio ligados ao frigorífico: @friboi.com.br (uma referência à popular marca de carne bovina da JBS no Brasil) e @jbs.com.br.

Os funcionários da JBS também frequentaram os corredores do ministério, segundo agendas dos servidores públicos com quem eles se encontraram: em nenhum caso foram identificados como representantes da Abiec ou ABPA. Os nomes aparecem sempre associados à JBS.

Maria Emilia Santoro Raucci participou de pelo menos sete reuniões no Mapa como diretora de Garantia de Qualidade da Friboi entre junho de 2020 e março de 2024.

Já Chalegh era uma das pessoas com acesso privilegiado à cúpula da pasta por meio de uma portaria privativa, em Brasília, conforme revelou a Repórter Brasil em agosto de 2024. Ele também manteve 24 compromissos oficiais pela JBS na Esplanada dos Ministérios, entre 2023 e 2025, segundo o projeto Agenda Transparente, da agência Fiquem Sabendo.

As entidades justificam suas indicações. Abiec informou que Maria Emilia Raucci é “uma profissional com sólida experiência no setor”, enquanto a ABPA atribui a escolha de Chalegh à “sua reconhecida trajetória e conhecimento técnico-jurídico sobre o tema”. Os dois funcionários da JBS também foram procurados para comentar, mas não retornaram os contatos da reportagem.

“É absolutamente natural, em todos os setores, que representantes de empresas se encontrem com as equipes das instituições reguladoras para prestar esclarecimentos e apresentar solicitações e contribuições, de maneira transparente”, diz a nota da JBS enviada à Repórter Brasil.

‘Limitar o valor da multa pode ser um estímulo para o frigorífico agir errado’
A Lei do Autocontrole limitou a R$ 150 mil o valor máximo das multas a estabelecimentos com irregularidades — antes, não havia teto para autos de infração. Planilhas com multas divulgadas pelo Ministério da Agricultura e Pecuária mostram autos de infração emitidos antes da mudança legal com valores muito superiores.

Em 2018, a Seara — empresa do grupo JBS — foi autuada em mais de R$ 1,8 milhão por manter a temperatura de seus sistemas de resfriamento de carcaças mais de seis graus acima do limite máximo estabelecido.

Percebendo o problema, o auditor fiscal analisou os registros de monitoramento da própria empresa — uma das obrigações do autocontrole. Ele constatou que as planilhas “estavam preenchidas com dados de horas futuras até o final do turno, ou seja, registravam dados para horários que ainda não tinham acontecido”.

Há ainda autos de infrações a frigoríficos do grupo JBS por “fraudar registros” (R$ 938 mil) e outras que mencionam falhas no sistema de autocontrole (uma delas com multa de R$ 313 mil).

“Limitar o valor da multa pode ser um estímulo para o frigorífico agir errado, já que em alguns casos pode ser mais caro se adequar à norma”, observa Carla Lettieri, diretora-executiva da Animal Equality Brasil.

Uma investigação recente da organização revelou que a ausência de agentes governamentais nos abates resulta em violações do bem-estar animal. “Nós sabemos que o bem-estar animal não é uma prioridade para a maioria das empresas. Elas estão interessadas em aumentar seu lucro”, completa.

Além de limitar o teto da multa, a nova lei estabelece que esse valor só pode ser aplicado após julgamento administrativo de terceira instância, feito por uma comissão com participação de membros da iniciativa privada.

“A Lei do Autocontrole, iniciativa do governo federal, resultou de um processo iniciado na década passada, tendo como referência solução já adotada por outros serviços públicos no Brasil e no mundo, em que a qualidade é um dos pilares”, defende a JBS.

O temor é que as mudanças na fiscalização tragam prejuízos também à saúde humana, uma vez que a análise visual das carcaças abatidas é fundamental para identificar zoonoses — doenças transmitidas de animais para humanos, como a brucelose.

Segundo o Ministério da Saúde, uma das principais formas de transmissão da brucelose a humanos é a via alimentar, com a ingestão de alimentos sólidos ou líquidos contaminados.

“Será que os fiscais privados vão ter a mesma independência dos auditores fiscais para apontar problemas? Eles vão parar a produção de um frigorífico que paga o seu salário?”, pondera Cláudio Ferreira, presidente do Fórum Nacional das Entidades Civis de Defesa do Consumidor.

Já a Confederação Nacional dos Trabalhadores na Indústria da Alimentação alerta para os riscos à saúde de mais de 1,6 milhão de trabalhadores do setor: “A nova lei do Autocontrole incrementa os riscos à saúde dos trabalhadores das indústrias alimentícias, por submetê-los ao contato direto com produtos potencialmente lesivos à integridade física, sem a presença qualificada do Estado para a identificação prévia e a tomada de providências preventivas”.

Em junho deste ano, a deputada federal Duda Salabert (PDT/MG) protocolou o PL 2714/2025, para revogar os dispositivos da legislação que permitem a transferência à iniciativa privada de atribuições da fiscalização agropecuária. O projeto aguarda designação de relator na Comissão de Saúde da Câmara.

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