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Terceirização: motivação técnica, jurídica ou política?

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Heleno Carvalho*

    Para melhor compreensão e enfrentamento das recorrentes iniciativas que buscam a terceirização da inspeção de produtos de origem animal, é imprescindível avaliar a motivação de seus atores. Seus defensores são conduzidos por prevalência de motivações técnicas, jurídicas ou políticas?

Nenhuma das três. O que vem influenciando contundentemente o debate é a predominância de interesses econômicos particulares, com nítido viés antiético, sobre critérios técnicos, jurídicos e políticos. Apresenta-se aqui um conflito entre interesses públicos e privados que pode comprometer o bem coletivo ou influenciar, de maneira imprópria o desempenho da função pública. Propositadamente, dois assuntos são conduzidos como se houvesse relação entre eles.

O primeiro trata dos limites de comercialização de produtos de origem animal impostos por força de lei. Empresas são limitadas a comercializar seus produtos no âmbito dos Municípios, Estados ou em todo o país, em função de seu órgão fiscalizador, quer seja Municipal, Estadual ou Federal.

Realmente é difícil compreender as razões dos limites territoriais impostos às empresas. Como explicar ao empresário localizado em uma pequena cidade, limítrofe a uma grande metrópole, que não pode comercializar seus produtos exatamente onde está o consumidor? Como explicar que os cidadãos da sua cidade podem comer seus produtos e os da cidade vizinha não? Nesse contexto, entram em cena os prefeitos. Pressionados por empresários e interessados em gerar empregos e riquezas em seus municípios, legitimamente usam sua força política para mudar o cenário e pressionam os deputados.

O segundo assunto trata da responsabilidade pela fiscalização, ou seja, se executada por servidores públicos ou se terceirizada por empresas credenciadas, prefiro chamar de “certificadoras de carne”, que transferem competências do Estado para particulares.

Porém, não há vínculo entre os dois assuntos. A terceirização por meio de certificadoras não é solução para a limitação territorial de comercialização de produtos. Espertalhões de olho na criação das certificadoras, muitas vezes assessorados por servidores públicos agindo em conflito de interesses, tentam convencer a todos que os assuntos são inseparáveis.

Porém, tal modelo já se mostrou danoso ao agronegócio. Em passado recente, o ex-ministro Reinhold Stephanes declarou publicamente que o modelo das certificadoras usados para rastreabilidade de animais levou o país a exportar carne não rastreada à Europa, obrigando o retorno das certificações para os órgãos oficiais.

Não pense que se tratam de pequenas empresas certificadoras. São na verdade embriões de um monstro. Participando de missão brasileira em auditoria de equivalência em um pais que usa a terceirização por meio de certificadoras, fui informado que há vinte anos, quando foi criado o sistema, existiam mais de vinte empresas credenciadas para fazer certificação e atualmente há somente uma. Imaginem a situação reproduzida em um dos maiores produtores de proteína animal do mundo? Aí está nosso monstro.

Quando discutem terceirização de inspeção de produtos de origem animal, seus defensores alegam que o poder público – seja ele municipal, estadual ou federal – não tem condições financeiras de custear os servidores. Assim tentam impor às pequenas empresas este ônus.
Um veterinário terceirizado custaria em torno de seis mil reais a um pequeno abatedouro. Taxas de abate ou de beneficiamento de produtos de origem animal sairiam bem mais em conta, como já acontece em diversos países. Com os recursos recolhidos e seus destinos vinculados, os municípios, estados e o governo federal contratariam servidores concursados para desempenhar as atividades, que são típicas de estado. No entanto, a solução não é interessante aos espertalhões. Movidos por interesses pessoais contaminam o debate para defender interesses ilegítimos e nada republicanos.

Esta semana deparei-me com o artigo do STF que, por analogia, pode nos oferecer luz:

"Em linhas gerais, pode-se dizer que a razão política pauta-se por noções de interesse, conveniência e oportunidade: faço isso, porque é interessante, conveniente e oportuno que eu o faça; ou, ao contrário, não faço isso, porque, embora de meu interesse, não é conveniente, nem oportuno, nesse momento, assim proceder.
Já a razão jurídica orienta-se por noções de legalidade e de justiça e justifica-se não mediante argumentos de interesse, conveniência e oportunidade, mas invocando a lei, a jurisprudência e os princípios gerais de direito. Faço isso, não porque é de meu interesse, mas porque a lei me faculta ou me obriga a fazê-lo. Condeno o réu, não porque é interessante, conveniente e oportuno, mas por isto, o que ele fez está tipificado no código penal como crime.
(…) A diferença, portanto, entre razão política e razão jurídica encontra-se no ponto de fuga que orienta o pensar de uma e de outra: enquanto aquela se guia por interesses, essa segue a lei.

As normas jurídicas, no entanto, têm diversos graus de imprecisão, seja no plano interno, seja no internacional, devendo, por isso, no caso concreto, ser interpretadas e precisadas ─ e essa atividade interpretativa se realiza mediante escolhas feitas dentro de um elenco de opções oferecidas em cada caso. " (1)

"Não existe a letra fria da lei, senão no discurso retórico, nem direito encapsulado, imune à política. O intérprete e aplicador da norma orienta-se por valores que ele próprio elegeu ou que lhe foram impostos desde sempre, e dos quais nunca conseguiu livrar-se. Desses valores desenvolverá sua noção de interesse, de conveniência e de oportunidade, e, a partir daí, interpretará a norma." (2)

Os servidores públicos, a classe política e os empresários podem e devem sim ser pautados por noções políticas – de interesses, conveniência e oportunidade. São legítimos. No entanto, não devem perder de vista as noções técnicas e de legalidade, pois somente dessa forma alcançam a justiça comum, na acepção mais profunda da palavra. Não podem deixar que interesses privados escusos contaminem a discussão, ponham uns contra os outros e comprometam interesses coletivos, influenciando de maneira imprópria o desempenho da função pública.

Movidos por interesses exclusivamente pessoais, meia dúzia de espertalhões contaminam toda a discussão. Extraem dela seus aspectos políticos, técnicos e jurídicos, o que pode resultar em prejuízo incalculável à toda sociedade, visto que, tanto por aspectos de saúde pública quanto econômicos, a terceirização da inspeção de produtos de origem animal pode alterar os rumos do agronegócio brasileiro.

Quando qualquer tema relacionado ao MAPA está em pauta, muitos são os interesses e interessados, na maioria legítimos. Produtores, consumidores, classe política, servidores e empresas têm interesses legítimos. As decisões emanados pelo MAPA definem seus rumos e até mesmo suas sobrevivências. Cabe ao gestor público manter o equilíbrio dos interesses legítimos e rechaçar os ilegítimos. Nada é construído de forma unilateral, por qualquer dos interessados. Todas as mudanças têm que ser construídas de forma coletiva e equitativa, pelos diversos interessados na construção de um grande pacto de modernização.

Não há quem duvide que o melhor resultado qualitativo é obtido quando a inspeção e fiscalização são realizadas por servidores públicos, com poder de polícia e demais garantias constitucionais que permitem desempenhar as atividades de forma imparcial, tendo como único norte o interesse público. De forma complementar, é legítimo que plantas industriais possam comercializar seus produtos além das fronteiras dos municípios. Dialogar é o caminho. Vamos deixar que meia dúzia de espertalhões contaminem o diálogo?

Fontes:

(1) O STF e a diferença entre decisão política e decisão técnica. 28 de fevereiro de 2014.
http://brasil.estadao.com.br/blogs/direito-e-sociedade/o-stf-e-a-diferenca-entre-decisao-politica-e-decisao-tecnica/

(2) Ainda sobre o STF e a diferença entre decisão técnica e decisão política. 06 de março de 2014.
http://brasil.estadao.com.br/blogs/direito-e-sociedade/ainda-sobre-o-stf-e-a-diferenca-entre-decisao-tecnica-e-decisao-politica/

* Heleno Guimarães de Carvalho é Médico Veterinário, Fiscal Federal Agropecuário e Coordenador do Conselho de Delegados Sindicais do ANFFA Sindical.

ANFFA Sindical é o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários
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