O Sindicato preparou um relatório acerca do PL 1.293/2021, que dispões sobre os programas de autocontrole
PL 1.293/2021 – Dispõe sobre os programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária e sobre a organização e os procedimentos aplicados pela defesa agropecuária aos agentes das cadeias produtivas do setor agropecuário, institui o Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária e a Comissão Especial de Recursos da Defesa Agropecuária, e revoga os dispositivos das leis aplicadas à defesa agropecuária que estabelecem penalidades e sanções.
1. CONSULTORIA PRIVADA NEOPÚBLICA SOLUÇÕES INOVADORAS EM GESTÃO
No segundo semestre de 2017 a consultoria privada Neopública Soluções Inovadoras em Gestão apresentou à Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SDA/Mapa), os resultados da consultoria no âmbito do Projeto de Cooperação Técnica BRA/IICA/13/004 – SISTEMA DE DEFESA AGROPECUÁRIA – MAPA.
O primeiro relatório asseverava em suas conclusões que “controvérsias que pairam sobre os limites do poder de polícia na atividade fiscalizatória constituem reflexão cara e necessária para a governança da SDA”.
Com as informações e considerações compendiadas em diagnóstico situacional controverso, a Neopúblicaofereceu no segundo relatório/produto uma “Proposta de Modelo Conceitual para o Sistema de Defesa Agropecuária”, mediante estudo comparativo entre modelos jurídico-institucionais diversos para a SDA, destacando-se, em especial, os resultados da maior ou menor intensidade de participação do setor privado nos respectivos arranjos administrativos.
A conclusão apresentada no segundo relatório ressaltava a “tendência e/ou preferência das autoridades (…) pelo modelo ‘dual’, composto por um ‘Neo’ (novo) Órgão Autônomo e uma Entidade de Colaboração, tanto que esta modelagem foi apresentada para debate interno e externo”.
Apontada a preferência opinativa por um modelo sincrético (dual), a Neopúblicaofereceu, como terceiro produto, minuta de Projeto de Lei que abarcou a proposta de instituição da “Secretaria de Defesa Agropecuária do Brasil – SDAB” – órgão “autônomo” sui generis (a exemplo de outros já existentes, como a Secretaria da Receita Federal do Brasil – SRFB) – e que autoriza a instituição do “Operador Nacional de Defesa Agropecuária – ONDA”, a par do cotejo realizado com o “Operador Nacional do Sistema Elétrico – ONS” (entidade privada de colaboração com o Poder Público).
À proposta oferecida, mediante a coexistência da Secretaria de Defesa Agropecuária do Brasil – SDAB com o Operador Nacional de Defesa Agropecuária – ONDA, acompanhava as transferências de competências e atribuições previstas no projeto de lei minutado. Posteriormente, um grupo de trabalho constituído na Secretaria de Defesa Agropecuária substituiu o Operador Nacional de Defesa Agropecuária – ONDA, cuja inadequação constitucional foi objeto de alerta do ANFFA Sindical, por um “serviço social autônomo”: Serviço Brasileiro de Apoio à Defesa Agropecuária – SEBRAD, com a finalidade de apoiar a execução de atividades de defesa agropecuária.
O relatório Neopúblicapropunha ainda sistemas de “autocontrole” na defesa agropecuária. O autocontrole, mencionado de forma muito superficial, ampliava os sistemas vigentes. A proposta permitia aos agentes adotarem a autodefesa primária, a autoinspeção dos insumos e serviços, e a autoinspeção e autoclassificação dos produtos agropecuários. Não havia ressalvas a fim de impedir que o “autocontrole” limitasse a capacidade de atuação e intervenção do Poder Público.
O projeto minutado também estipulava a criação do Conselho Administrativo de Recursos da Defesa Agropecuária – CARDA, órgão colegiado de caráter judicante, paritário, integrante da estrutura do Mapa, com competência para julgar recursos de ofício e voluntários contra decisão de primeira instância proferida pela SDA.
A proposta estipulava composição paritária ao CARDA, entre o setor público e o setor privado, já que 50% (cinquenta por cento) de seus membros seriam representantes dos contribuintes, indicados por entidades representativas dos produtores agropecuários, produtores de insumos agropecuários ou processadores de alimentos de origem animal ou vegetal de nível nacional.
O projeto previa ainda uma aplicação distorcida do instituto do credenciamento de agentes públicos ou privados para executar atividades cujas competências originárias são do Mapa, consubstanciando em terceirização disfarçada e gerando a formação de grupos privilegiados.
2. CMAP – AVALIAÇÃO DA INSPEÇÃO ANIMAL
O Conselho de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas – CMAP é um órgão consultivo responsável por avaliar políticas públicas relacionadas aos Programas Finalísticos do Plano Plurianual (PPA). A estrutura do CMAP é composta pelos Secretários-Executivos da Casa Civil, da Controladoria-Geral da União e do Ministério da Economia, este último responsável por sua coordenação.
Em junho de 2020 a Secretaria de Avaliação, Planejamento, Energia e Loteria do Ministério da Economia enviou à Secretaria Executiva do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento o Relatório de Avaliação e de Recomendação da Política de Defesa Agropecuária – Inspeção de Produtos de Origem Animal em Estabelecimentos de Abate[1], realizado no âmbito de Monitoramento e Avaliação de Políticas Públicas (CMAP).
Entre as recomendações e achados contidos no relatório, destacam-se:
Buscar, em uma eventual revisão do modelo, alternativas que possam reduzir o peso financeiro para o setor público, garantindo o atendimento da demanda sem comprometer a confiabilidade e a aceitabilidade internacional do modelo de inspeção brasileiro.
Buscar a proposição de novas fontes de financiamento para as atividades de Defesa Agropecuária com vistas a garantir a sustentabilidade financeira da área.
Buscar mudanças que tornem a fiscalização mais célere – sem, no entanto, prejudicar a qualidade da inspeção, implicar maiores despesas à Administração Pública ou infringir as vedações legais à delegação do Poder de Polícia do Estado.
Considerando que a força de trabalho disponível atualmente é, a princípio, insuficiente para execução das atividades de auditoria e de inspeção nos estabelecimentos e que há dificuldades orçamentárias para contratação de novos servidores, avaliar práticas utilizadas no mercado externo que possibilitem reduzir a demanda pelo serviço de agentes públicos ou diminuir o custo desse serviço para o poder público – por exemplo, atribuindo parte das tarefas e/ou de seus respectivos custos a agentes privados.
Desenvolver um sistema que forneça controles gerenciais que permitam acompanhamento qualificado dos processos de auditoria e inspeção de produtos de origem animal.
No que tange à transparência de informações, disponibilizar dados públicos sobre a lotação dos servidores que atuam no SIF, bem como sobre o tempo de lotação em um mesmo estabelecimento.
Aperfeiçoar a participação dos agentes privados nas atividades auxiliares à inspeção, reduzindo a percepção do risco de conflito de interesses, especialmente por parte dos importadores.
Aprimorar o sistema de rotatividade do pessoal da SDA alocado na fiscalização e na inspeção dos estabelecimentos, contribuindo para diminuir o risco de conflitos de interesse eventualmente advindos da relação contínua entre o fiscal do serviço e o estabelecimento sujeito à fiscalização.
Desenvolver métricas de controle da produtividade da força de trabalho, evitando que o desempenho individual dos servidores seja medido apenas por critérios subjetivos e interpessoais, e aprimorar os instrumentos de avaliação de desempenho e meritocracia na promoção dos agentes a postos de comando.
Atualizar os valores das multas aplicadas por infrações cuja defasagem em relação ao ambiente econômico atual amplia o risco moral associado a produtores e proprietários de estabelecimentos fiscalizados, contribuindo para a prática reiterada de infrações – visto que as penalidades não são, em regra, suficientes para mitigar o risco de condutas irregulares.
Para maior transparência, sugere-se a divulgação do valor total anualizado das multas aplicadas pelo SIF nos relatórios anuais de gestão do DIPOA e de gestão do MAPA publicados no sítio da internet do MAPA, acrescentando as informações por área de negócio (Carne, Leite, etc.).
Buscar a modernização dos LFDAs, com o aperfeiçoamento das atividades laboratoriais e a ampliação da capacidade de análise – o que deverá garantir o apoio técnico-científico laboratorial às ações de defesa sanitária animal no processo de abate.
Aperfeiçoar a capacidade do MAPA de credenciamento, monitoramento e fiscalização de laboratórios privados, que constituem estrutura suplementar importante para as análises.
3. AUDITORIA TCU
Em junho de 2018 o Tribunal de Contas da União – TCU apresentou ao Mapa o Relatório de Auditoria da Fiscalização Agropecuária nº 264/2018[2], em referência à auditoria operacional realizada em 2018 por equipe de auditores da Secretaria de Controle Externo da Agricultura e do Meio Ambiente – SecexAgroAmbiental, com o objetivo de avaliar os processos de trabalho e identificar possibilidades de melhoria na fiscalização agropecuária federal, no suporte de tecnologia da informação e no processo administrativo sancionatório decorrente das infrações autuadas na execução dessas atividades, a cargo da Secretaria de Defesa Agropecuária do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (SDA/Mapa).
Destacam-se entre os achados:
Deficiências na inspeção permanente geram riscos para a segurança higiênico-sanitária dos produtos de origem animal. Da inadequação do modelo de inspeção permanente para a realidade institucional. Da ausência de rotatividade dos servidores lotados na inspeção permanente. ausência de critérios para evitar remoção arbitrária de servidores lotados permanentemente em estabelecimentos. Da Defasagem dos Regulamentos Técnicos de Inspeção de Bovinos, Aves e Suínos.
Não há divulgação dos resultados das fiscalizações e inspeções.
O planejamento das fiscalizações é deficiente e não se baseia em risco. Da Ausência de Critérios Objetivos para a Avaliação de Riscos no Dipov, DFIP e DFIA. Da não Utilização das Informações Provenientes de Denúncias.
O monitoramento das fiscalizações é deficiente e, para algumas áreas, inexistente.
O suporte de sistemas informatizados para os processos de fiscalização é precário. Da Ausência de Sistema Corporativo para Gerenciar o Planejamento e Execução das Fiscalizações. Do Excesso de Sistemas Cadastrais e Alguns com Tecnologias Obsoletas. Da Baixa Maturidade da Gestão e Governança de TI e da Carência de Pessoal.
O Processo Administrativo Sancionatório apresenta problemas de segurança jurídica e efetividade. Da Ausência de Procedimentos Uniformes no PAS. Da Ausência de Decisões Colegiadas no PAS. Da Não Atualização dos Valores das Multas.
Em fevereiro de 2020, o Mapa apresentou ao TCU o Plano de Ação para as Determinações contidas no Acordão TCU n° 2302/2019, em referência à auditoria operacional realizada em 2018.
Entre as ações elencadasno Plano de Ação, destacam-se [3]:
Proposta de Decreto amplia a possibilidade de contratação de profissionais que serão qualificados como Médico Veterinário Oficial (MVO) para atuação na inspeção ante e post mortem nos estabelecimentos de inspeção permanente;
Elaborar Projeto de Lei que instituirá as taxas de inspeção e fiscalização e de serviços da Defesa Agropecuária. Os valores arrecadados com a taxa de inspeção serão direcionados para pagamento dos Médicos Veterinários Oficiais que venham a ser contratados por Serviço Social Autônomo, conforme está previsto na minuta de decreto citada no item 5 acima.
Verificar com a Secretaria Executiva o Mapa a competência para publicação de ato relativo à remoção de servidores, pois a Gestão de Pessoal está a cargo da Coordenação Geral de Administração de Pessoas.
Definição das diretrizes gerais para norma que discipline os critérios de remoção dos servidores lotadas na Secretaria de Defesa Agropecuária.
Elaborar Projeto de Lei unificando os procedimentos dos processos administrativos de fiscalização agropecuária (sancionatórios).
Elaborar Projeto de Lei unificando prevendo comissão de recursos para determinadas sanções oriundas de processos administrativos de fiscalização agropecuária (sancionatórios).
Elaborar Projeto de Lei padronizando as sanções administrativas, elevando o valor das multas e prevendo mecanismo de atualização dos valores.
Propor ato normativo com critérios e procedimentos para rotatividade de servidores à Secretaria Executiva.
4. DECRETO N. 10.419/2020
O Decreto n. 10.419, de 7 de julho de 2020, regulamenta a alínea “e” do § 1º do art. 9º da Lei n. 1.283/1950 e altera o Decreto n. 9.013/2017, dispondo acerca da inspeção “ante mortem” e “post mortem” de animais.
O Decreto institucionaliza uma “equipe privada” de atuação do Serviço de Inspeção Federal (SIF):
Art. 2º A inspeção ante mortem e post mortem de animais será realizada por equipe do serviço de inspeção federal, integrada, obrigatoriamente, por Auditor Fiscal Federal Agropecuário, com formação em Medicina Veterinária, que a coordenará e supervisionará, e por:
I – Agente de Inspeção Sanitária e Industrial de Produtos de Origem Animal ou por ocupantes dos demais cargos efetivos de atividades técnicas de fiscalização agropecuária, respeitadas as devidas competências; ou
II – profissionais com formação em Medicina Veterinária. Parágrafo único. O serviço de inspeção federal definirá as unidades de atuação dos profissionais de que trata o caput.
Art. 3º Os profissionais de que trata o inciso II do caput do art. 2º serão colocados à disposição do serviço de inspeção federal:
I – por meio de contrato por tempo determinado, para atender necessidade temporária de excepcional interesse público, nos termos do disposto na Lei nº 8.745, de 9 de dezembro de 1993;
II – por meio de cessão de servidor ou de empregado público ou de acordos de cooperação técnica com os entes federativos; ou
III – por meio de contratos celebrados com serviço social autônomo.
§ 1º Os profissionais de que trata o caput serão subordinados tecnicamente ao serviço de inspeção federal.
§ 2º O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento supervisionará o serviço social autônomo de que trata o inciso III do caput ou participará como membro de seu Conselho de Administração ou Conselho Deliberativo.
O Decreto n. 10.419/2020 criou, por meio da denominada “equipe” do SIF, um artifício jurídico para pulverizar as atribuições privativas dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários (Affas), contidas na Lei n. 10.883/2004, com a assunção das respectivas funções por agentes privados, médicos veterinários não concursados, que poderão atuar na fiscalização como se Affas fossem. A “justificativa” como suposta pretensão de juridicidade do Decreto n. 10.419/2020 seria a intitulada “supervisão/coordenação” da Equipe por um Affa.
A configuração da usurpação de funções fica patenteada a fortiori na hipótese do art. 125 do Decreto n. 9.013/2017, com a nova redação dada pelo Decreto n. 10.419/2020, ao estabelecer que o médico veterinário privado poderá ser assistido por Agentes de Inspeção Sanitária e Industrial de Produtos de Origem Animal (Aisipoa). Em outras palavras, o agente privado, não investido sequer de cargo público, figuraria como responsável hierárquico de servidores públicos (Aisipoa).
O Anffa Sindical ajuizou ação de conhecimento, com pedido de tutela de urgência, objetivando, em síntese, determinar ao Governo Federal que se abstenha de proceder à estruturação das equipes do Serviço de Inspeção Federal e às respectivas contratações de profissionais médicos veterinários nos moldes e de acordo com as modalidades previstas no Decreto nº 10.419/2020.[4]
Em sua decisão, a M. Juíza Federal Titular da 6ª Vara/DF Ivani Silva da Luz prescreve:
A pretexto de regulamentar o art. 9º, § 1º, alínea ‘e’, da Lei nº 1.283/1980, o Decreto nº 10.419/2020 exorbitou do poder regulamentar, apresentando diversas ilegalidades e inconstitucionalidades ao prever a contratação de profissionais privados (médicos veterinários sem aprovação em concurso público) para o exercício de funções privativas dos auditores fiscais federais agropecuários.
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A pretexto de regulamentar a lei, não se admite a violação à Constituição, notadamente quanto à regra do concurso público.
A competência prevista no art. 84, inciso IV, da Constituição deve ser exercida unicamente com a finalidade de dar fiel execução das leis, sem possibilidade de inovar o ordenamento jurídico e, especialmente, sem desrespeitar outros dispositivos do texto constitucional.
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Na realidade, observa-se que esse ato normativo foi editado na de tentativa de resolver, ao arrepio das normas constitucionais, situação que vem se agravando há vários anos por ineficiência administrativa, consoante se observa, exemplificativamente, das recomendações exaradas no acórdão nº 3.293, proferido pelo Tribunal de Contas da União ainda no ano de 2014.
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Há, ainda, outro relevante aspecto a invalidar o ato normativo profligado: exercício do poder de polícia por particulares.
O art. 78 do Código Tributário Nacional traz conhecida definição sobre o poder de polícia (aplicável não apenas ao direito tributário), conceituando-o como a “atividade da administração pública que, limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercado, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos.”
Segundo Maria Sylvia Di Pietro, “o poder de polícia é a atividade do Estado consistente em limitar o exercício dos direitos individuais em benefício do interesse público”, de modo que a “Administração Pública, no exercício da parcela que lhe é outorgada do mesmo poder, regulamenta as leis e controla a sua aplicação, preventivamente (por meio de ordens, notificações, licenças ou autorizações) ou repressivamente (mediante imposição de medidas coercitivas).” (Direito Administrativo. 27ª ed. São Paulo: Atlas, 2014, p. 124).
Na mesma tocada, Ricardo Alexandre e João de Deus conceituam “o poder de polícia consiste na faculdade conferida ao Estado de estabelecer regras restritivas e condicionadoras do exercício de direitos e garantias individuais, tendo em vista o interesse público” (Direito Administrativo. 3ª ed. São Paulo: Método, 2017, p. 138).
Diante desses conceitos, conclui-se que a inspeção e a fiscalização industrial e sanitária de produtos de origem animal, em que se inclui o procedimento de a inspeção “ante” e “post mortem”, conforme visto acima, configuram exercício do poder de polícia.
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Enfim, por qualquer ângulo que se olhe a questão, é certo que as atividades tratadas no Decreto nº 10.419/2019 não podem ser exercidas por profissionais particulares, quer seja por meio de contrato temporário, quer seja por meio da celebração de contratos com serviços sociais autônomos.
Contra a sentença favorável e a tutela de urgência (ID 83686096), o Tribunal Regional Federal da Primeira Região atendeu monocraticamente e inaudita altera parte à medida de contracautela formulada pela UNIÃO (ID 82715045) para a suspensão.
Em sua decisão, o Desembargador Federal Italo Fioravanti Sabo Mendes prescreve [5]:
Em juízo de cognição inerente ao atual momento processual, verifica-se, concessa venia, a existência de potencial risco de grave lesão à ordem pública, na perspectiva da ordem administrativa, diante da relevância da fundamentação apresentada, pela ora requerente, no sentido de que “(…) a UNIÃO, nesse caso presentada pelo Ministério da Agricultura,Pecuária e Abastecimento (MAPA), se vê, de maneira completamentesúbita, mediante decisão proferida por juízo monocrático,impossibilitada de estruturar de forma adequada as equipes do Serviçode Inspeção Federal e, pior, é obrigada a desestruturar equipes doServiço de Inspeção Federal, causando paralisação de turnos de abate einterrupção do funcionamento de empresas que trabalham com abatee processamento de produtos de origem animal” (ID 82715045, Pág. 11, fl. 13 dos autos digitais).
De fato, ao julgar procedente o pedido formulado na inicial, com a concessão da tutela de urgência, “(…) para determinar à Ré que seabstenha de proceder à estruturação das equipes do Serviço de InspeçãoFederal e às respectivas contratações de profissionais médicosveterinários nos moldes e de acordo com as modalidades previstas noDecreto nº 10.419/2020” (ID 82715054, Pág. 16, fl. 78 dos autos digitais), a decisão impugnada interferiu, de forma direta, na organização interna da Administração Pública Federal e no exercício regular de suas funções, mais especificamente na estruturação de suas equipes de trabalho parao desempenho das atribuições inerentes ao Serviço de Inspeção Federaldo Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (MAPA), compotencial para afetar o próprio funcionamento regular do órgão e acontinuidade desse serviço público essencial para o país.
Além disso, é de se vislumbrar, concessa venia, na espécie, a possibilidadeda ocorrência de grave lesão à economia pública, mormente quando aora requerente consigna, na inicial, que, “(…) sendo drasticamentereduzido o atual quadro de profissionais responsáveis pela inspeção “antemortem” e “poste mortem”, será reduzida na mesmíssima proporção, aatividade de abates em empresas privadas do setor, o que acarretará,de forma indubitável, consequências econômicas absolutamenteirreversíveis e devastadoras, (…)” (ID 82715054, Págs. 12/13, fls. 14/15dos autos digitais – as expressões grifadas e em negrito constam do textooriginal).
Dessa forma, conforme alegado pela União, “(…) justamente por causar grave embaraço à atuação administrativa, a sentença tem efeitos diretos,concretos e aferíveis de plano, sob a atividade regulada, com implicações imediatas em toda a cadeia produtiva, notadamente a sua desestruturação, que trará, a reboque, o aumento de preços aoconsumidor e a redução de ofertas” (ID 82715045, Pág. 56, fl. 58 dosautos digitais – as expressões grifadas e em negrito constam do textooriginal).
………………………………….
Assim, com a devida licença de posicionamento distinto, o afastamento da eficácia de norma regulamentar – dotada de presunção relativa de validade – acabou restringindo, na espécie, a atuação do Poder Executivo no exercício das funções essenciais inerentes ao Serviço de Inspeção Federal, caracterizando, mais uma vez pedindo-se licença a entendimento outro, hipótese de violação à ordem pública.
Eis as razões pelas quais, com a licença de ótica distinta, encontra-se caracterizado, na espécie, o quadro de grave violação à ordem pública (administrativa) e à economia pública.
Finalmente, é de se considerar presente, na espécie, data venia, o periculum in mora, uma vez que, na linha do sustentado na inicial, a decisão ora questionada “(…) resultará em dispensa imediata de 349(trezentos e quarenta e nova) médicos veterinários que, diariamente,realizam inspeção “ante” e “post mortem” em abatedouros, sempossibilidade de reposição a curto/médio prazo” (ID 82715045, Pág. 55, fl. 57 dos autos digitais – as expressões em negrito e grifadas constam do texto original).
Nesse cenário, portanto, na hipótese da superveniência de provimento de mérito favorável à ora requerente, em grau de recurso, verifica-se que tal provimento seria, concessa venia, ineficaz, em virtude da possibilidade de prejuízo imediato para a estruturação do Serviço de Inspeção Federal, circunstância que, somada aos demais fundamentos acima expendidos, justifica, com a licença de ótica diversa, a suspensão dos efeitos da sentença ora impugnada em seus efeitos.
Diante disso, defiro o pedido de suspensão liminar da sentença e da tutela de urgência nela concedida, na forma do pedido inicial (ID 82715045, Pág. 59, fl. 61 dos autos digitais).
O Anffa Sindical interpôs Agravo com pedido de reconsideração contra a decisão (ID 83686096) que concedeu inaudita altera parte medida de contracautela formulada pela UNIÃO [6]:
Argumentativamente, a UNIÃO alegou que a sentença implicaria a dispensa de centenas de médicos veterinários contratados, prejuízos à estrutura administrativa, à ordem econômica etc.
Trata-se de argumentos “ad terrorem” que não condizem à espécie dos autos. O SIF funciona há décadas independentemente do recentíssimo Decreto n. 10.419/2020.
Os argumentos retóricos formulados pela UNIÃO levam à suposição de que a sentença apelada teria o condão de “paralisar” ou de “reduzir” as atividades do SIF, o que constitui fato inequivocamente estranho à espécie dos autos.
O “fundo de direito” envolvido na controvérsia é flagrantemente contrário à tese do Poder Público, que utilizou a prerrogativa processual (rectius, privilégio) propositadamente, pois à luz do pedido de efeito suspensivo à apelação (art. 1.012, § 3º, I, do CPC), via mais adequada (isonomia processual e do contraditório), seria insustentável invocar a necessária plausibilidade do direito.
Ou seja, considerando a inconstitucionalidade e a ilegalidade manifestas do Decreto n. 10.419/2020, a “contracautela” requerida pela UNIÃO visa a obter “respaldo” desse Tribunal Regional Federal da 1ª Região para uma conduta manifestamente violadora da ordem jurídica.
Os argumentos acolhidos pela decisão agravada, prolatada inaudita altera parte, decorrem de “pareceres” e notas técnicas do próprio Poder Público, evidentemente interessado na conservação do ato regulamentar impugnado, justificando-se agora, em razão do presente estabelecimento do contraditório, a reconsideração da decisão agravada monocraticamente ou a sua reforma colegiada, nos termos do art. 321, § 3º, do RITRF1.
5. SEMINÁRIO SDA/MAPA SOBRE BOAS PRÁTICAS DE FABRICAÇÃO E AUTOCONTROLE
Em dezembro de 2018, a Deputada Tereza Cristina, indicada para assumir a pasta do Ministério da Agricultura Pecuária e Abastecimento, afirmou ao jornal Estado de SP que “A fiscalização do Ministério será uma auditoria feita de tempos em tempos. Se achar que não está bom, vai lá toda semana”.
Recém empossada, em janeiro de 2019 comentou no mesmo periódico que “a proposta (de autocontrole)foi pensada, primeiramente, para o setor de frigoríficos, alterando o processo de inspeção de carnes e derivados produzidos no país. Mas esse segmento é ‘complexo’ e, por isso, não deve ser o primeiro a experimentar mudanças nesse sentido”.
Após articulação do Anffa Sindical, o Mapa realizou no dia 21 de fevereiro de 2019, o Seminário SDA/Mapa sobre boas práticas de fabricação e autocontrole. Com transmissão ao vivo, o evento ocorreu no auditório TCU, em Brasília.
Na solenidade de abertura, a ministra da Agricultura, Tereza Cristina, lembrou que o mundo está em constante modernização “Nós temos que evoluir também nos nossos sistemas de fiscalização e de controle. E cada vez a evolução exige mais da gente porque o consumidor lá na ponta quer a segurança de que o seu alimento é de qualidade. Nós temos que nos juntar para mostrar para o consumidor brasileiro que estamos fazendo a inspeção adequada, a auditoria adequada, mas de uma maneira moderna. Também é pensado assim para a exportação que tem várias peculiaridades de acordo com os países. Então, temos que construir nosso sistema de controle para que possamos atestar aquilo que nós estamos entregando”, reforçou.
A ministra também citou o papel do Affa no processo, ao ressaltar que o autocontrole nada mais é do que a responsabilidade de ambos os lados dos setores: “Nós precisamos ir lá, temos o protocolo e temos que ver se esse protocolo está sendo seguido. Acho que isso valoriza o nosso Fiscal, o nosso Auditor, fazendo o papel importante de trazer a segurança para que o consumidor saiba que ele está presente, auditando, mas de uma outra maneira. Não precisa ele estar lá no dia-a-dia. Algumas ações são importantes para que ela esteja lá. E isso vai ser discutido entre cada segmento”, defendeu.
De acordo com o secretário de Defesa Agropecuária, José Guilherme Leal, “Não se trata de pensar numa ação do Estado fiscalizador mais branda, omissa, mas numa forma mais inteligente de atuação. Com trabalho na análise de risco. Também não é um meio de o setor privado fazer o que quer, sem observar regras. Ao contrário. É necessário maior responsabilidade, maior investimento em controle, em sistema, em pessoas dentro do setor privado, com capacitação e monitoramento preciso, confiável e auditável. E também se está sujeito a punições mais severas, quando é dada mais liberdade para que se possa gerir seus próprios processos”.
6. COMITÊ TÉCNICO DE PROGRAMAS DE AUTOCONTROLE
Em abril de 2019, a SDA, instância central do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária – SUASA e responsável pela gestão da defesa agropecuária do País, instituiu o Comitê Técnico de Programas de Autocontrole, de caráter permanente e de cunho técnico e consultivo, com o objetivo de promover a articulação dos órgãos e entidades, públicas e privadas, para implementar programas de autocontrole a serem aplicados pelos estabelecimentos regulados pela legislação da defesa agropecuária.
O Anffa Sindical participou do Comitê na qualidade “convidado”. Durante as reuniões, a entidade defendeu que autocontrole não significa autoinspeção nem auto-regulamentação, mas uma série de atividades auditáveis que o setor produtivo realiza no sentido de atender as legislações. Ações preventivas e corretivas, auditorias internas, analises de riscos, controles de qualidade.
No começo, o Comitê buscou atuar em áreas específicas da SDA. Mas as diferenças entre as áreas solidificaram a necessidade de um guarda-chuva comum, a dar cobertura às especificidades. Então a SDA passou a trabalhar a hipótese de um instrumento jurídico. Inicialmente uma Medida Provisória.
No Comitê, foi apresentada uma proposta com objetivo de uniformizar o conceito de autocontrole e instituir a obrigatoriedade básica de implantação, manutenção e verificação de programas de autocontrole, considerando a atividade econômica, o porte da empresa e os riscos à economia nacional e à saúde pública.
Em adendo, a proposta concebia um programa opcional, denominado Agrocontrole, para níveis avançados de comprovação da implantação, manutenção e verificação de programas de autocontrole.
Portanto, a proposta apresentava um viés obrigatório, aliado a um programa opcional, com comandos gerais, ficando o detalhamento para regulamentos nas diferentes áreas.
7. PL 1.293/2021
7.1 Histórico
Os fragmentos de regulamento apresentados no Comitê Técnico de Programas de Autocontrole referiam-se à uma proposta que Dispõe sobre a defesa agropecuária, sistemas de autocontrole, o sistema unificado de atenção à sanidade agropecuária e dá outras providências.
Em março de 2021 a Secretária de Defesa Agropecuária apresentou em live a minuta de Projeto de Lei encaminhada à Casa Civil que Dispõe sobre o autocontrole nas atividades agropecuária e agroindustrial, sobre a organização e procedimentos da defesa agropecuária; institui o Programa de Incentivos à Conformidade em Defesa Agropecuária; cria a Comissão Especial de Recursos da Defesa Agropecuária e revoga os dispositivos que estabelecem penalidades e sanções das Leis aplicadas à defesa agropecuária.
Em 7 de Abril de 2021 o Presidente da República despacha para o Congresso Nacional o texto do Projeto de Lei 1.293/2021 que Dispõe sobre os programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária e sobre a organização e os procedimentos aplicados pela defesa agropecuária aos agentes das cadeias produtivas do setor agropecuário, institui o Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária e a Comissão Especial de Recursos da Defesa Agropecuária, e revoga os dispositivos das leis aplicadas à defesa agropecuária que estabelecem penalidades e sanções.[7]
A proposição tramita na Câmara dos Deputados como o Projeto de Lei nº 1.293, de 2021.
7.2 Exposição de Motivos
No encaminhamento do texto de Projeto de Lei ao Presidente da República, a ministra da Agricultura Tereza Cristina Corrêa da Costa Dias, afirma que a expansão progressiva do agronegócio brasileiro, ocorrida nas últimas quatro décadas, “impõe maior demanda por parte do Estado na execução das práticas de controle e fiscalização agropecuária”, chega à conclusão que “é notório que a capacidade da “máquina pública” em manter ou ampliar a prestação desses serviços encontra-se limitada, pois isso está vinculada obrigatoriamente ao aumento progressivo e continuado dos gastos públicos”.
A ministra registra um “consenso do setor público e privado” quanto à necessidade de atualização da legislação sanitária, no sentido de “prover maior autonomia e responsabilização aos fabricantes de insumos e de produtos agropecuários”
Nesse sentido, considera que é fundamental que órgãos públicos com a função de polícia administrativa sanitária “passem a atuar de forma mais inteligente”. Assim, avalia que o Projeto de Lei “permite maior dinamismo e liberdade às atividades econômicas agropecuárias, possibilitando que o Estado concentre suas ações no controle e fiscalização de atividades de maior risco”. Em conclusão, a ministra expressa:
Aconversão deste Projeto de Lei em Lei é cercada por forte expectativa do segmento agropecuário, tendo ampla aceitação por parte das entidades fiscalizadas pela Secretaria de Defesa Agropecuária, vez que é resultado de ampla discussão setorial
O momento é oportuno e conveniente para apresentar esta proposta de lei, pois ela se coaduna com a política atual do Governo Federal em promover reformas estruturantes no âmbito da Administração Pública Federal, com vistas a melhorar o ambiente de negócios, a competitividade e a participação do Brasil no comércio internacional, tendo o propósito de gerar o bem-estar social.
7.3 Contextualização
O Projeto de Lei observa princípios que já vêm sendo objeto de normatização no atual Governo, como a Lei de Desburocratização[8]e a Lei da Liberdade Econômica [9].
A Lei de Liberdade Econômica, em particular, prevê que suas disposições serão observadas “na aplicação e na interpretação do direito civil, empresarial, econômico, urbanístico e do trabalho nas relações jurídicas que se encontrem no seu âmbito de aplicação e na ordenação pública, inclusive sobre exercício das profissões, comércio, juntas comerciais, registros públicos, trânsito, transporte e proteção ao meio ambiente”. Em seu art. 2º, prevê que são princípios a serem observados “a liberdade como uma garantia no exercício de atividades econômicas”, a “boa-fé do particular perante o poder público”, a “intervenção subsidiária e excepcional do Estado sobre o exercício de atividades econômicas” e “o reconhecimento da vulnerabilidade do particular perante o Estado”, com tratamento especial a atividades de baixo risco.
O art. 4º estabelece o dever da administração pública, no exercício de regulamentação de norma pública, evitar o abuso do poder regulatório de maneira a,indevidamente: criar reserva de mercado ao favorecer, na regulação, grupo econômico, ou profissional, em prejuízo dos demais concorrentes; redigir enunciados que impeçam a entrada de novos competidores nacionais ou estrangeiros no mercado; exigir especificação técnica que não seja necessária para atingir o fim desejado; redigir enunciados que impeçam ou retardem a inovação e a adoção de novas tecnologias, processos ou modelos de negócios, ressalvadas as situações consideradas em regulamento como de alto risco; aumentar os custos de transação sem demonstração de benefícios; criar demanda artificial ou compulsória de produto, serviço ou atividade profissional, inclusive de uso de cartórios, registros ou cadastros; introduzir limites à livre formação de sociedades empresariais ou de atividades econômicas; restringir o uso e o exercício da publicidade e propaganda sobre um setor econômico, ressalvadas as hipóteses expressamente vedadas em lei federal; e exigir, sob o pretexto de inscrição tributária, requerimentos de outra natureza de maneira a onerar atividades de baixo risco.
7.4 Avaliação dos dispositivos
Em virtude da extensão do Projeto de Lei, faz-se necessário o exame pontual de aspectos dos dispositivos mais relevantes.
7.4.1 Credenciamento
Art. 3° Para efeito desta lei entende-se por:
………………..
V – credenciamento: reconhecimento ou habilitação, pelo poder público, de pessoas físicas ou jurídicas, para execução de ações específicas de defesa agropecuária;
O credenciamento de agentes públicos ou privados para executar atividades cujas competências originárias são do Mapa é prática corrente no universo de ação da defesa agropecuária. Porém, o instituto do credenciamento vem sendo aplicado de forma distorcida, consubstanciando em terceirização disfarçada e gerando a formação de grupos privilegiados.
A Lei n. 8.666/93, em vigor até a entrada em vigor da Lei nº 14.133, de 1º de abril de 2021 – Nova Lei de Licitações e Contratos Administrativos, admite dois institutos jurídicos de contratação direta: a dispensa de licitação e a inexigibilidade de licitação. A distinção entre ambas repousa primariamente na presença da competição entre particulares. Na dispensa, a lei desobriga o administrador a fazer o procedimento licitatório, mesmo quando a competição se mostrar possível. Na inexigibilidade, a licitação é impossível pela inviabilidade de competição entre os licitados.
O credenciamento é enquadrado como hipótese de inexigibilidade de licitação, tanto pela doutrina quanto pelos órgãos de controle externo, pois pressupõe que todos os interessados são contratados. Não há que se competir por nada.[10]
No entanto, a SDA raramente contrata entidades credenciadas por ela. Ao contratar, elege poucos em detrimento dos demais, o que deturpa o instituto do credenciamento, pois a inexigibilidade de licitação pressupõe que todos os credenciados sejam contratados.
Concretiza-se aqui a ocorrência de um “cartel” de prestadores de serviço, contrariando o princípio da impessoalidade na administração pública.
Impossibilitar a participação de novos interessados, fixar prazos para credenciar ou criar empecilhos que impeçam ou dificultem novos credenciamentos não somente afrontam o instituto do credenciamento, como instrumento de inexigibilidade licitatória, uma vez que não pode haver limites nem número máximo de credenciados, como afrontaria os princípios da isonomia e da impessoalidade, pois privilegia poucos em detrimento de outros interessados.[11]
Nesse sentido, é importante frisar que a reiterada jurisprudência do TCU, embora considere legítima a adoção do mecanismo de credenciamento, destaca que a observância da isonomia e da impessoalidade constitui condição sine qua non para legitimar o instituto:
Não é demais relembrar, no entanto, para a perfeita
compreensão do assunto, o resultado do exame efetivado nos
referidos autos, demonstrando que o credenciamento atende a
diversos princípios norteadores da licitação, da seguinte maneira: […]
Impessoalidade – o credenciamento obedece este princípio, pois a finalidade da Administração é prestar a melhor assistência […] com o menor custo possível […] atingindo todas as entidades prestadoras de serviço que se enquadrarem nos requisitos estabelecidos;
Igualdade – no credenciamento o princípio da igualdade estará
muito mais patente do que na licitação formal. Poderá ser
credenciada da pequena clínica, ou um consultório de apenas um
médico, ao hospital de grande porte, com direito de participação de
todos, sendo a sua utilização em pequena ou grande escala vinculada
à qualidade e à confiança dos beneficiários que, conforme a
aceitação destes, permanecerão ou serão descredenciados […];[TCU, Acórdão n. 656/1995-Plenário, Processo n. 016.522/1995-8, Rel. Min. Homero Santos, j. 6.12.1995; grifos aditados]
A aplicação distorcida do instituto do credenciamento, a pretexto de excepcionar a regra geral licitatória, acaba por ensejar, nessas condições, situação jurídica de “terceirização velada”, em nítida ofensa ao art. 37, caput, XXI, da Constituição Federal.
A transferência a particulares de funções tipicamente estatais, além da violação aos princípios administrativos constitucionais da impessoalidade e da isonomia (mediante “credenciamento” com finalidade distorcida), também afronta os princípios da eficiência (caput do art. 37) e do concurso público (inc. II do art. 37).
Afinal, os interesses dos agentes temporários – não concursados – podem eventualmente imiscuir-se naqueles inerentes às próprias pessoas fiscalizadas. A realização de atividade fiscalizatória por profissionais que não integram os cargos efetivos da Administração (pessoas, portanto, não capacitadas para tanto) causa distorções de potencial lesividade à saúde pública.
O credenciamento surge, no art. 3º, V do PL 1.293/2021, como uma forma de conferir a agentes privados, sejam pessoas físicas ou jurídicas, um papel de execução de ações de defesa agropecuária, ou seja, amplia a participação privada de forma substitutiva à atuação do poder público.
. O projeto é, ademais, bastante vago quanto a quem poderia ser credenciado, e para que atividades, pressupondo-se, porém, que pessoas jurídicas poderiam ser credenciadas para exercer ações de defesa agropecuária em proveito próprio, assim como profissionais (pessoas físicas) poderiam ser credenciados para prestar esses serviços a empresas interessadas.
Nos termos do art. 16, o Mapa “poderá dispor de especialistas para subsidiar a avaliação de registro de produtos, por meio de credenciamento, contratação de pessoa física ou jurídica ou ajustes com instituições de pesquisa públicas ou privadas, na forma prevista em regulamento”.
Portanto, a extensão das ações requer um exame cuidadoso, pois, em princípio, pode ser admitida a atuação privada em atividades técnicas, instrumentais, de mera verificação, com base nas quais o poder público emitirá a declaração de conformidade (habilitando ao exercício de um direito) ou aplicará alguma sanção, no caso de desconformidade. As pessoas físicas ou jurídicas credenciadas, assim, jamais poderão vir a exercer ações que envolvam atividades privativas de cargos efetivos ou autoridades da Defesa Agropecuária.
7.4.2 Certificação por entidades de terceira parte
Art. 3° Para efeito desta lei entende-se por:
………………..
VIII – autocontrole: capacidade do agente privado de implantar, executar, monitorar, verificar e corrigir procedimentos, processos de produção e distribuição de insumos agropecuários, alimentos e produtos de origem animal ou vegetal, visando garantir sua inocuidade, identidade, qualidade e segurança;
……………….
Art. 6º Os agentes privados regulados pela legislação da defesa agropecuária desenvolverão programas de autocontrole com o objetivo de garantir a inocuidade, a identidade, a qualidade e a segurança dos seus produtos.
………………..
§ 3º A implementação dos programas de autocontrole de que trata o caput poderá ser certificada por entidade de terceira parte.
§ 4º O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, conjuntamente com o setor produtivo, desenvolverá manuais de orientação para elaboração e implementação de programas de autocontrole.
O autocontrole é forma de exercício, pelo próprio agente privado, de medidas de caráter preventivo ou corretivo, no âmbito de sua atividade, de forma a assegurar a conformidade com as normas legais. A previsão de programas de “autocontrole” não é uma inovação em termos absolutos. São exemplos de normas vigentes que tratam de sistemas de autocontrole por meio de nomenclaturas variadas:
REGULAMENTO | ARTIGOS |
DECRETO Nº 5.741/06 – SUASA | Art. 10, III – confiabilidade e autocontrole Art. 85, P. único – autocontrole e pontos críticos de controle |
DECRETO Nº 6.871/09 – BEBIDAS | Art. 84, §3º – boas práticas de fabricação |
DECRETO Nº 9.013/17 – PRODUTOS DE ORIGEM ANIMAL | Artigos 10, I e XVII1, 12, IV, 46, 742, 83, 99, 213, 428, IV, 475, 495, §1º |
DECRETO Nº 5053/14 – PRODUTOS VETERINÁRIOS | Art. 46-A – sistema de garantia da qualidade que funcione de forma autônoma |
DECRETO Nº 6.296/07 – ALIMENTAÇÃO ANIMAL | Art. 47, §1º – controle da qualidade dos seus produtos Art. 49 – conformidade dos seus produtos |
DECRETO Nº 4.074/02 – AGROTÓXICOS | Art. 68 – garantir a qualidade Art. 69 – controle de qualidade próprio |
DECRETO Nº 5.153/04 – SEMENTES E MUDAS | Art. 37 – controle de qualidade de responsabilidade do produtor |
DECRETO Nº 4.954/04 – FERTILIZANTES, INOCULANTES, CORRETIVOS | Art. 57 – procedimentos escritos e mecanismos de controles e registros Art. 57, §3º – Boas Práticas de Fabricação e Controle |
Para adoção de programas de autocontrole é pressuposto que haja meios efetivos de auditoria e controle por parte da Defesa Agropecuária, para manutenção de sua validade, e ressalvas para que em nenhum momento o “autocontrole” possa impedir ou limitar a capacidade de atuação e intervenção do Poder Público.
O §3º do art. 6º prevê hipótese de que “entidade de terceira parte” valide os programas de autocontrole, mediante certificação. Trata-se de medida que compromete o papel do Poder Público, caracterizando delegação de tarefa que deveria permanecer sob a sua órbita.
Nos termos do Decreto nº 5.471, de 2006, que regulamenta os artigos 27-A, 28-A e 29-A da Lei nº 8.171/1991, a certificação sanitária fitossanitária e de identidade e qualidade integra atribuições de cargos efetivos, em caráter privativo, como prevê o art. 62:
Art. 62 Compete às três instâncias do Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária e aos Sistemas Brasileiros de Inspeção de Produtos e Insumos Agropecuários, em suas áreas de competência, implantar, monitorar e gerenciar os procedimentos de certificação sanitária, fitossanitária e de identidade e qualidade, que têm como objetivo garantir a origem, a qualidade e a identidade dos produtos certificados e credibilidade ao processo de rastreabilidade. § 1º Os processos de controles assegurarão as condições para identificar e comprovar o fornecedor do material certificado na origem e no destino dos produtos, que serão identificados por códigos que permitam a sua rastreabilidade em toda a cadeia produtiva, na forma definida em norma específica. § 2º Compete, na forma da lei, aos Fiscais Federais Agropecuários a emissão dos certificados oficiais agropecuários exigidos pelo comércio internacional.
Ao prever que entidades privadas “de terceira parte” poderão certificar os programas de autocontrole, um agente privado estará, na prática, validando procedimentos e métodos de processamento que, a rigor, deveriam sê-lo pelas autoridades de defesa agropecuária. O § 4º consolida esse papel subsidiário do Mapa ao prever que desenvolverá “em conjunto” com o setor produtivo, manuais de orientação para esse fim.
7.4.3 – Regularização por notificação
Art. 3º Para fins do disposto nesta Lei, considera-se:
……………………………………..
X – regularização por notificação – adoção de medidas corretivas pelo agente, em decorrência de notificação expedida pela fiscalização agropecuária sobre irregularidade ou não conformidade, observado o prazo estabelecido.
……………………………………….
Art. 12. Aos estabelecimentos que aderirem ao Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária fica autorizada a regularização por notificação de que trata o inciso X do caput do art. 3º.
§ 1º O estabelecimento notificado não será autuado, desde que adote as medidas corretivas necessárias e sane a irregularidade ou não conformidade no prazo indicado na notificação.
§ 2º Regulamento disporá sobre as irregularidades ou não conformidades passíveis de regularização por notificação.
Relativamente ao Programa de Incentivo à Conformidade, instituído na forma do art. 10 para estimular o aperfeiçoamento de sistemas de garantia da qualidade, o art. 12 confere aos estabelecimentos a adoção de medidas de regularização “por notificação”.
A autoridade da fiscalização agropecuária notificará, portanto, o agente privado sobre a irregularidade ou não conformidade, e firmará prazo para que seja solucionada. E, nos termos do § 1º, não será autuado caso adote as medidas corretivas e sane a irregularidade.
Contudo, o § 2º do art. 12 remete a um regulamento definir quais as irregularidades que seriam ou não passíveis desse benefício. A própria Lei deveria tratar dessas situações, em razão de sua gravidade, por exemplo, definindo como passíveis de “regularização por notificação” apenas as irregularidades ou infrações de natureza leve, que não compromete a qualidade do produto final, como previa, no caso da Inspeção do Trabalho, a Medida Provisória nº 905/19, que não teve sua apreciação concluída pelo Congresso Nacional.
7.4.4 – Atos públicos de liberação de estabelecimento
Art. 13. Para registro, cadastro, credenciamento ou qualquer outro ato público de liberação de estabelecimento junto ao Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, serão exigidos, de acordo com a natureza da atividade, documentos e informações necessários às avaliações técnicas.
§ 1º Fica dispensada a apresentação de documentos e autorizações emitidas por outros órgãos e entidades de governo que não tenham relação com a liberação de estabelecimento de que trata o caput.
O art. 13 segue tendência já observada em outros segmentos da Auditoria Fiscal, que é a intensificação do uso de sistemas eletrônicos para recebimento e processamento de licenças, cadastros e credenciamentos. Observa, ainda, princípios da desburocratização, ao dispensar a apresentação de documentos e autorizações de outros órgãos e instâncias de governo, eliminando excesso burocrático e submete esses procedimentos a regra de proporcionalidade.
Contudo, deixa de prever a possibilidade de inspeção in loco, subentendendo que toda liberação de estabelecimento poderá se dar apenas a partir de verificação documental e informações prestadas pelo agente privado, o que não se coaduna com a natureza dos estabelecimentos destinados ao processamento de produtos de origem animal e vegetal ou mesmo de produção de vacinas e insumos, entre outros.
7.4.5 Registros de produtos
Art. 15. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento incentivará a adoção de procedimento administrativo simplificado, o uso de meios eletrônicos e o estabelecimento de parâmetros e padrões, com vistas à automatização da concessão das solicitações de registro de produtos agropecuários.
§ 1º O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento disponibilizará sistema eletrônico para receber as solicitações de registro de produtos no prazo de cento e oitenta dias, contado da data de publicação desta Lei.
§ 2º A concessão de registro de produtos que possuam parâmetros ou padrões normatizados será automática.
§ 3º A não observância aos parâmetros ou padrões normatizados implicará o cancelamento do registro do produto e a imposição de sanções administrativas.
§ 4º O disposto no caput não se aplica aos produtos regulados pela Lei nº 7.802, de 11 de julho de 1989.
Assim como o art. 13, o art. 15 segue tendência de intensificação do uso de sistemas eletrônicos, ao prever sistema específico para receber solicitação de registro de produtos.
Porém, o § 2º prevê a concessão automática de registro de produtos quando houver “parâmetros ou padrões normatizados” a serem atendidos. Ocorre que, nos termos do Decreto nº 9.013, de 2017, e sua regulamentação por atos da SDA, a quase totalidade dos produtos agropecuários já se acha vinculada a observar padrões normatizados.
Assim, o leite, a carne e seus derivados, os pescados, o ovo e derivados, o mel de abelhas, estariam automaticamente “autorizados”, pela simples aplicação do princípio, eliminando a necessidade de fiscalização mais apurada de seus processos produtivos. Da mesma forma, antimicrobianos e antiparasitários destinados a animais produtores de alimentos, por exemplo, seriam automaticamente registrados. A ressalva contida no § 4º preserva somente os agrotóxicos desse risco.
7.4.6 Contratação de especialistas
Art. 16. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento poderá dispor de especialistas para subsidiar a avaliação de registro de produtos, por meio de credenciamento, contratação de pessoa física ou jurídica ou ajustes com instituições de pesquisa públicas ou privadas, na forma prevista em regulamento.
O art. 16 abre enorme precedente para a terceirização de atividades que deveriam ser exercitadas por autoridades da defesa agropecuária. Ao prever que o Mapa poderá se valer de “especialistas” para “subsidiar as avaliações de registro de produtos”, poderá ampliar desmesuradamente o papel de profissionais estranhos ao serviço público, ainda mais que permitido simples “credenciamento” ou “contratação” de pessoas físicas ou jurídicas, ou ajustes com instituições públicas e privadas, que poderão suprir necessidades da Defesa Agropecuária em detrimento dos servidores de carreira.
Tais situações de contratação deveriam ser tratadas como excepcionalidade e apenas e somente no caso de os servidores de carreira não deterem expertise técnica necessária ao exame dos produtos em fase de exame, notadamente quando se tratar de inovações tecnológicas. Contudo, a formulação não fixa tais limitações e é uma “porta aberta” para a ampliação da participação de atores privados em atividades exclusivas de Estado.
7.4.7 Medidas cautelares
Art. 22. O Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento poderá aplicar as seguintes medidas cautelares, isolada ou cumulativamente, ante a evidência ou suspeita de que uma atividade ou um produto agropecuário represente risco à defesa agropecuária:
…………………….
§ 3º A medida cautelar deverá ser cancelada imediatamente quando for comprovada a resolução da não conformidade que deu causa à sua aplicação.
O art. 22 trata das medidas cautelares, no caso de evidência ou suspeita de risco à defesa agropecuária. As medidas de apreensão, suspensão de atividade, destruição ou devolução seguem o já disposto no art. 495 do Decreto nº 9.013/2017, o qual prevê em seu § 5º que “após a identificação da causa da irregularidade e a adoção das medidas corretivas cabíveis, a retomada do processo de fabricação será autorizada”, mas não dispensa a retirada do mercado de produtos que tenham sido afetados pela irregularidade.
Contudo, o § 3º do art. 22 meramente prevê que a medida cautelar de destruição ou devolução poderá ser suspensa quando for comprovada a resolução da não conformidade que deu causa a aplicação da cautelar. Trata-se de falha que pode ser facilmente resolvida autorizando-se a retomada da produção, mas não a liberação dos produtos que não atendam aos requisitos para sua utilização.
7.4.8 Comissão Especial de Recursos da Defesa Agropecuária
Art. 34. Aplicada a penalidade de suspensão da atividade, de registro, de cadastro ou de credenciamento, ou a penalidade de cassação de registro, de cadastro ou de credenciamento, caberá recurso à Comissão Especial de Recursos da Defesa Agropecuária, à qual compete o julgamento do processo administrativo em terceira e última instância.
……………………………
§ 3º A composição e o funcionamento da Comissão Especial de Recursos da Defesa Agropecuária serão definidos em regulamento.
O art. 34, quando trata do processo administrativo de fiscalização, prevê a criação de uma Comissão Especial de Recursos da Defesa Agropecuária o papel de instância recursal de terceira instância e definitiva, no caso de impugnação de autos de infração.
Essa instância, porém, terá sua composição e funcionamento definidos em regulamento. Tal configuração confere poderes enormes a essa instância e sua composição, remetida a Decreto, poderá dar margem à subordinação do interesse público ao dos agentes privados. Para esse fim, bastará que a maioria da sua composição e sua presidência, com ou sem voto de qualidade, sejam atribuídas a representantes do setor produtivo, repetindo problemas como os já vivenciados pelo Conselho Administrativo de Recursos Fiscais – CARF, na Receita Federal. Em 2019, o Poder Executivo intentou criar instância similar na Fiscalização Trabalhista, medida que não foi aprovada pelo Congresso Nacional.
Proposta semelhante foi apresentada em estudo da consultoria Neopublica, realizado em 2017. O Conselho Administrativo de Recursos da Defesa Agropecuária – CARDA como última instância administrativa na defesa agropecuária, composto por “conselheiros titulares e suplentes, de reconhecida capacidade técnica e notório conhecimento especializado”, sendo pelo menos 50% “representantes dos produtores agropecuários, produtores de insumos agropecuários ou processadores de alimentos de origem animal ou vegetal, indicados em lista tríplice, pelas respectivas entidades representativas de nível nacional”,
A proposta em tela, porém, sequer faz previsão em lei dessa composição, conferindo poderes extraordinários ao Presidente da República para definir essa composição em simples regulamento. A medida guarda relação com a revogação do art. 7º do Decreto-Lei nº 467, de 13 de fevereiro de 1969, proposta pelo art. 39 do anteprojeto.
Apesar de sua característica de órgão judicante, na forma proposta no Projeto de Lei, atores de interesse potencialmente direto ou indireto nas questões apreciadas podem vir a participar do Comitê, em clara ofensa aos princípios constitucionais da impessoalidade, da moralidade e do devido processo legal administrativo, sob o aspecto da imparcialidade do julgador (art. 5º, LV, art. 37, caput, da Constituição Federal).
7.4.9 Efeito suspensivo dos recursos
Art. 35. A interposição tempestiva de recurso terá efeito suspensivo
O efeito devolutivo é o presente em todos os recursos. Por esse efeito, reabre-se a oportunidade de reapreciar e, novamente, julgar questão já decidida. Dessa forma, conclui-se que não se pode, logicamente, conceber um recurso que não restabeleça, no todo ou em parte, a possibilidade de regulamento.
Já o efeito suspensivo refere-se ao impedimento da imediata execução do decisório impugnado. A nova legislação processual civil tratou esse efeito recursal como exceção, pelo fato de apenas o recurso de apelação possuir efeito suspensivo automático.
O PL 1.293/21, na contramão do processo civil, inverte a ordem e institui o efeito suspensivo como regra.
O Efeito suspensivo, em regra, caberia somente aos casos aonde a imediata decisão produza efeitos que criem riscos de dano grave, de difícil ou impossível reparação e fique demonstrada a probabilidade de provimento do recurso. Vale frisar que, essa concessão, dependerá sempre da decisão do relator, caso a caso.
8. CONCLUSÕES
Nos termos da Lei nº 8.171, de 17 de janeiro de 1991, a defesa agropecuária tem como objetivos assegurar a sanidade das populações vegetais, a saúde dos rebanhos animais, a idoneidade dos insumos e dos serviços utilizados na agropecuária e a identidade e a segurança higiênico-sanitária e tecnológica dos produtos agropecuários finais destinados aos consumidores.
Para esse fim, atribui ao poder público desenvolver as atividades de vigilância e defesa sanitária vegetal e animal, a inspeção e classificação de produtos de origem vegetal e animal, seus derivados, subprodutos e resíduos de valor econômico e a fiscalização dos insumos e dos serviços usados nas atividades agropecuárias. Essas atividades são organizadas de forma a “garantir o cumprimento das legislações vigentes que tratem da defesa agropecuária e dos compromissos internacionais firmados pela União”
O PL 1.293/2021 defineDefesa Agropecuária como“estrutura constituída de normas e ações que integram sistemas públicos e privados, destinada à preservação ou à melhoria da saúde animal, da sanidade vegetal e da inocuidade, da identidade, da qualidade e da segurança de alimentos, insumos e demais produtos agropecuários”. A Fiscalização Agropecuária é definida como “atividade de controle, supervisão, vigilância, auditoria e inspeção agropecuária, no exercício do poder de polícia administrativa, com finalidade de verificar o cumprimento da legislação”. As duas definições expressam a completude da atividade e sua sujeição ao regime jurídico administrativo, de direito público, como expressão do poder de polícia e atividade exclusiva de Estado.
O crescimento e diversificação do agronegócio exigem maior participação da sociedade organizada e de seus agentes econômicos nas atividades de Defesa Agropecuária. Visando à promoção da saúde, as ações de vigilância e defesa sanitária dos animais e dos vegetais são organizadas em um Sistema Unificado de Atenção à Sanidade Agropecuária – SUASA, do qual participam os serviços e instituições oficiais; os produtores e trabalhadores rurais, suas associações e técnicos que lhes prestam assistência; os órgãos de fiscalização das categorias profissionais diretamente vinculadas à sanidade agropecuária; e as entidades gestoras de fundos organizados pelo setor privado para complementar as ações públicas no campo da defesa agropecuária. Assim, o SUASA já prevê a participação do setor privado.
A simplificação administrativa e a limitação da capacidade regulatória do Estado de forma a fortalecer a tomada de decisões baseada em evidências e evitar o excesso regulatório são elementos importantes para fomentar a inovação e a competitividade econômicas. A previsão de programas de “autocontrole” não é inovação em termos absolutos. É pressuposto para a sua adoção que haja meios efetivos de auditoria e controle por parte da Defesa Agropecuária, para manutenção de sua validade, e ressalvas para que em nenhum momento o “autocontrole” possa impedir ou limitar a capacidade de atuação e intervenção do Poder Público.
Contudo, a simplificação administrativa, as limitações à atividade regulatória do Estado e a atuação da do setor privado em ações de defesa agropecuária não podem ser colocados acima do interesse público, e impedir o exercício de atividades de regulação e fiscalização, ou desautorizar seus agentes, colocando o jus imperium em segundo plano, quando necessário à proteção da coletividade. Há que se considerar os limites da atuação de cada setor, ou seja, de forma a que o setor privado não invada as prerrogativas e atividades exclusivas de Estado, ainda que a pretexto de colaboração.
Nesse sentido, o Acordão TCU nº 2302/2019 identifica fragilidades na sustentabilidade do atual modelo de fiscalização federal agropecuária: “As demandas à SDA têm aumentado proporcionalmente ao crescimento do agronegócio brasileiro, mas a sua estrutura não vem acompanhando esse crescimento, ocasionando, em alguns casos, atendimento inadequado”. E aponta as causas: redução de pessoal, falta de sistemas informatizados, inadequação de equipamentos e tecnologias, desatualização e inadequação de comandos normativos e restrições orçamentárias e financeiras.
Em lugar de adotar medidas de fortalecimento institucional aderentes aos princípios defendidos pelo TCU e compatíveis com a Constituição, o PL 1.293/2021, em alguns momentos, coloca em risco a separação de responsabilidades entre o poder público e a iniciativa privada e contribui para uma redução do papel da fiscalização, a pretexto de conferir maior capacidade de atuação dos agentes privados em atividades produtivas, cuja necessidade e importância é reconhecida, mas que não pode se dar à revelia da supremacia do interesse público.
O Anffa Sindical alerta: na forma proposta, o PL 1.293/2021 requer um exame mais aprofundado, à luz de riscos e danos à sociedade.
[1]Processo SEI nº 18101.100643/2020-31. Ofício SEI nº 147714/2020/ME
[2]Processo TC 021.468/2018-4
[3]Processo SEI 21000.071180/2019-01
[4]PROCESSO: 1041299-56.2020.4.01.3400. Número do documento: 20092419142710200000314181556.
[5]PROCESSO: 1041299-56.2020.4.01.3400. Número do documento: 20111317380930500000082341005.
[6]PROCESSO: 1041299-56.2020.4.01.3400. Número do documento: 1036046-05.2020.4.01.0000.
[7]Despacho nº 123, de 6 de Abril de 2021 (DOU 07/04/2021).
[8]Lei nº 13.726, de 8 de outubro de 2018, que “Racionaliza atos e procedimentos administrativos dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios e institui o Selo de Desburocratização e Simplificação”.
[9]Lei nº 13.874, de 20 de setembro de 2019), que “Institui a Declaração de Direitos de Liberdade Econômica; estabelece garantias de livre mercado; altera as Leis nº 10.406, de 10 de janeiro de 2002 (Código Civil), 6.404, de 15 de dezembro de 1976, 11.598, de 3 de dezembro de 2007, 12.682, de 9 de julho de 2012, 6.015, de 31 de dezembro de 1973, 10.522, 2 de 19 de julho de 2002, 8.934, de 18 de novembro 1994, o Decreto-Lei nº 9.760, de 5 de setembro de 1946 e a Consolidação das Leis do Trabalho, aprovada pelo Decreto-Lei nº 5.452, de 1º de maio de 1943; revoga a Lei Delegada nº 4, de 26 de setembro de 1962, a Lei nº 11.887, de 24 de dezembro de 2008, e dispositivos do Decreto-Lei nº 73, de 21 de novembro de 1966; e dá outras providências.”
SOUZA, Maxiliano D’avila Cândido de. O credenciamento no âmbito da Administração Pública Federal. Conteúdo Jurídico, Brasilia-DF. Disponível em: <http://www.conteudojuridico.com.br/?artigos&ver=2.45419&seo=1>.
Parecer Técnico Jurídico Nº 002/2010, Centro de Apoio Operacional das Promotorias de Justiça da Defesa da Saúde – CAO-SAÚDE – Ministério Público de Minas Gerais.
PL 1.293/2021 – Dispõe sobre os programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária e sobre a organização e os procedimentos aplicados pela defesa agropecuária aos agentes das cadeias produtivas do setor agropecuário, institui o Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária e a Comissão Especial de Recursos da Defesa Agropecuária, e revoga os dispositivos das leis aplicadas à defesa agropecuária que estabelecem penalidades e sanções.