Nota Técnica do Ministério Público do Trabalho sobre o PL 1293/21

O MINISTÉRIO PÚBLICO DO TRABALHO (MPT), no exercício das suas atribuições estatuídas no art. 127 da Constituição da República de 1988 e nos arts.  5º, III, “e”, 6º, XX, 83, V, e 84, caput, da LC nº 75/93, expede a presente manifestação  sobre os pontos mais relevantes referente ao Projeto de Lei 1.293 de 07 de abril de  2021.

Nota Técnica do Ministério Público do Trabalho sobre o PL 1293/21
Nota Técnica do Ministério Público do Trabalho sobre o PL 1293/21

1. INTRODUÇÃO


O PL 1.293/2021 dispõe sobre os programas de autocontrole dos agentes privados regulados pela defesa agropecuária e sobre a organização e os procedimentos  aplicados  pela  defesa  agropecuária  aos  agentes  das  cadeias  produtivas  do  setor agropecuário, bem como institui o Programa de Incentivo à Conformidade em Defesa Agropecuária e a Comissão Especial de Recursos da Defesa Agropecuária, revogando, ainda,  os  dispositivos  das  leis  aplicadas  à  defesa  agropecuária  que  estabelecem penalidades e sanções, atingindo a devida observância do concurso público e o dever de poder de polícia administrativa do Estado, trazendo riscos ao patamar civilizatório mínimo do trabalhador.

2. DA INCONSTITUCIONALIDADE MATERIAL
 

Em que pesem os propósitos declarados, o Projeto de Lei potencializa o estabelecimento de uma modalidade de terceirização ilícita por parte da administração  pública delegando poderes típicos de polícia administrativa a particulares, incorrendo em potencial autofiscalização e permitindo que atividades típicas da fiscalização agropecuária sejam exercidas por pessoas estranhas aos quadros funcionais do Estado, com violação à regra constitucional do concurso público (Art. 37, I e II da CF/88) e, ainda, omitindo uma definição baseada em critérios técnicos e de segurança, com regras que preservem a objetividade e a independência da atuação do auditor no seu âmbito de atividade.

Com  efeito, o artigo  3º, VIII, do PL instrumentaliza a existência do autocontrole caracterizando-se pela “capacidade do agente privado de implantar,  executar, monitorar, verificar e corrigir procedimentos, processos de produção e distribuição de insumos agropecuários, alimentos e produtos de origem animal ouvegetal, com vistas a garantir sua inocuidade, identidade, qualidade e segurança”. O PL não expressa de forma inequívoca que o exercício de autocontrole tem caráter instrumental não subsidiando o afastamento da necessária atuação da fiscalização agropecuária  exercida  pelos  agentes  públicos, dispondo  genericamente  que  o credenciamento se daria pelo “reconhecimento ou habilitação de pessoas físicas ou jurídicas pelo Poder Público, para execução de ações específicas relacionadas à defesa  agropecuária (  art  3º,  V)  e trazendo  inclusive  a  possibilidade  de  que  a implementação dos programas de autocontrole poderia ser certificada por “terceira parte” (art 6º, parágrafo 3º) .

Como é cediço, o poder de polícia é instrumento essencial de que dispõe o Estado para resguardar o interesse público, sendo atividade típica e imperiosa do poder público não cabendo seu exercício ao particular, uma vez que justamente se busca resguardar a predominância do interesse público sobre o privado.

O múnus público da atividade sancionadora pertence ao servidor público sendo que a delegação a particulares do poder de polícia administrativa pode desbordar para indesejável conflito de interesses entre o público, de resguardar o interesse geral da sociedade, e o privado, na eliminação de embaraços e custos na busca pelo aumento de resultados financeiros imediatos. A Administração Pública possui o irrenunciável poder-dever de restringir direitos sempre que eles, de alguma forma, conflitarem com os interesses da coletividade (art 174 da CRFB/88);

Há, ainda, clara violação à regra do concurso público consagrada no art. 37, II e § 2º, da CF/88, bem como ao princípio da ampla acessibilidade a cargos e empregos públicos, estatuído pelo art. 37, I, CF/88, e pelo art. 21 (2) da Declaração Universal de Direitos Humanos de 1948. Com efeito, o PL acaba por admitir a prática de atos atualmente definidos como ímprobos pelo art. 11, V, da Lei nº 8.429/92 (“frustrar a licitude de concurso público”), ensejando dificuldades de fiscalização, além de permitir que cargos e empregos sejam colocados em extinção, para que, após, sejam providos por eventual credenciamento e habilitação de particulares nos moldes de autocontrole, menos onerosa para a administração pública, de forma imediata e direta, e sem concurso público. Ademais, já se observam violações a essa regra constitucional em especial por meio de contratações temporárias de fiscalizações desvirtuadas, sem respaldo constitucional e com a abertura para a perpetração de fraudes ao certame público, em ofensa aos princípios da legalidade, impessoalidade, moralidade e eficiência administrativas (art. 37, caput, da CF/88). Diante da dispensa de concurso público, afinal, pode haver toda forma de favorecimento (com possibilidades  de  nefastas  trocas  de  favores), nepotismo e agraciamento de apadrinhados ou grupos políticos.

O Projeto, se aprovado, tende a romper com um dos princípiosestruturantes  da administração pública, segundo o qual o serviço público para ser bem prestado, e não sofrer solução de continuidade, deve contar com quadro de pessoal de carreira, qualificado e constantemente avaliado e capacitado (art. 39, § 2º, da CF/88).

É importante ressaltar que no caso em questão, diante da essencialidade da atividade desenvolvida pela fiscalização agropecuária, eventual ausência do controle estatal  potencializaria o  risco  à saúde  dos  trabalhadores  expostos  nas  atividades eventualmente não fiscalizadas pelo poder público, bem como à segurança alimentar da população.

Com efeito, é função precípua do fiscal o efetivo diagnóstico de doenças e pragas, de prevenção à febre aftosa, da Peste Suína Africana (PSA), da brucelose, tuberculose e outras doenças que podem colocar em risco políticas sanitárias do setor agropecuário, não podendo tal controle ser colocado em eventual conflito de interesses, comprometendo a credibilidade do controle sanitário da produção nacional e trazendo riscos, inclusive, à própria atividade econômica e às empresas que atuam nas atividades fiscalizadas.

Tenha-se como exemplo o risco de contaminação de trabalhadores por doenças como a tuberculose e a brucelose, que podem ser transmitidas ao homem, já que se tratam de zoonoses. O risco de transmissão é acentuado principalmente para aqueles trabalhadores que tem contato com os animais, como é o caso de trabalhadores de matadouros-frigoríficos. Um controle rígido da contaminação do rebanho com estas doenças  fomenta  o  desenvolvimento  de  um  ambiente  concorrencial  sadio,  em condições justas, e traz segurança ao próprio empregador pois, além de proteger e dar confiança no mercado consumidor, evita a criação de passivo trabalhista uma vez que é dever do empregador zelar pela higidez física de seus empregados, fornecendo meio ambiente de trabalho seguro para o desenvolvimento das atividades laborais (art. 7º, inc. XXII, da CF c/c 225 CRFB/88).

É importante observar que, infelizmente, os rebanhos brasileiros não estão livres de focos de doenças como a brucelose bovina, que pode ser transmitida para o ser humano através do contato direto com os animais, assim como no manuseio ou consumo de produtos derivados contaminados. A preocupação com a prevalência de focos de brucelose numa importante Unidade da Federação para o segmento - Mato Grosso do Sul - levou a EMBRAPA a publicar orientações intituladas: “Identificação de Brucella spp. em bovinos com lesões sugestivas de brucelose” em que constam informações que não podem ser ignoradas: 

“A prevalência de focos da brucelose bovina em propriedades pecuárias no Brasil varia de 0,32% a 41,5%. O Estado de Mato Grosso do Sul tem 41,5% de suas fazendas com pelo menos um animal reagente à prova sorológica. Estes índices por si só são muito expressivos e impactam nos diferentes segmentos das cadeias produtivas da pecuária de corte e de leite, além de implicar em barreira comercial à exportação da carne bovina.” (disponível em:            https://www.embrapa.br/busca-de-publicacoes/- /publicacao/1118276/identificacao-de-brucella-spp-em-bovinos-com- lesoes-sugestivas-de-brucelose).


Ademais, o risco sanitário e à saúde pública é evidente, conforme exposto na  nota  da  União  Nacional  dos  Fiscais  Agropecuários  (UNAFA) que analisa especificamente a proposta legislativa: “ao permitir de forma ilimitada a atuação de profissionais privados em ações típicas de Estado, na prática, o Projeto transfere para o setor privado o  poder  de  se  autofiscalizar  e  dificulta  a  identificação  e  punição  de fraudadores em caso de adulteração de produtos como leite, queijos, mel, azeite,  frangos  e  congelados,  carnes  e  bebidas  em  geral. Além disso, o Projeto permite, também de forma ilimitada, o registro automático de produtos, entre eles drogas aplicadas em animais produtores de  alimentos  que  podem  deixar  resíduos  em  alimentos. Produtos antimicrobianos, por exemplo, podem causar resistência a antibióticos no consumidor  e  o  desenvolvimento  de  superbactérias.

Ao não deixar claro a forma da realização da atividade fiscalizadora e a garantia de seu controle efetivo pelo Estado não pode ser ignorada a evidente ameaça à saúde pública, que também atinge a própria qualidade dos produtos e as atividades respectivas. Há o evidente risco de comprometimento da imagem do país no mercado externo, com prejuízos às empresas e ao desenvolvimento do mercado e à geração de empregos de qualidade. 

Nesse particular, é importante salientar que o Brasil, assim como outros 194 países que integram a OMS, devem cumprir o quanto previsto no Regulamento Sanitário Internacional – RSI de 2005, cujo propósito e abrangência, nos termos do artigo 2 “são prevenir, proteger, controlar e dar uma resposta de saúde pública contra a propagação internacional de doenças, de maneiras proporcionais e restritas aos riscos para a saúde pública, e que evitem interferências desnecessárias com o tráfego e o comércio internacionais”. Para tanto, é o Estado Parte responsável por notificar à OMS, e “dentro de 24 hora a contar da avaliação de informações de saúde pública, sobre todos os eventos em seu território que possam se constituir numa emergência de saúde pública de importância internacional” (artigo 6). Ora, claro, portanto, que a fiscalização de atividades em que há potencial para o surgimento de microrganismos que venham a ameaçar a saúde pública, devem estar integradas ao sistema de vigilância do Estado, seja para possibilitar a análise do caso concreto, seja para gerar o alerta no exíguo prazo determinado pelo RSI. O prazo extremamente restrito tem por fundamento justamente evitar-se a propagação de doenças e depende de ajuste fino que o autocontrole ora proposto não tem condições de oferecer.

O documento Frontiers 2016: Emerging issues of environmental concern, da UNEP, já retratava, de forma muito clara e quase que premonitória, sobre a possibilidade de pandemias emergirem em frequência e gravidade muito maiores do que as vivenciadas no século passado. Veja-se:


Cerca de 60 por cento de todas as doenças infecciosas em humanos são zoonótico assim como 75 por cento de todas as doenças infecciosas emergentes. Em média, uma nova doença infecciosa surge em humanos a cada quatro meses. Embora muitos se originem na vida selvagem, o gado muitas vezes serve como uma ponte epidemiológica entre a vida selvagem e infecções humanas. Este é especialmente o caso de animais criados  de  forma  intensiva,  que  muitas  vezes  são geneticamente semelhantes dentro de um rebanho e, portanto, falta a diversidade genética  que  fornece  resiliência:  o  resultado  de  ser  criado para características de produção em vez de resistência a doenças.  Um exemplo de atuação do gado como uma "ponte de doença" é o caso da gripe  aviária. Os patógenos,  que  primeiro  circularam  nas  aves selvagens, depois infectaram aves domésticas e delas passaram para os humanos¹. (Tradução livre).

O  mesmo  documento  pontua  o  surgimento  de  diversos  outros  vírus zoonóticos a partir de ambientes produtivos. Entre eles, menciona a gripe aviária (Avian influenza), relacionada a produção intensiva de frangos; o vírus Nipah (Nipah virus), relacionado à produção intensiva de porcos e frutas na Malásia; o vírus da encefalite japonesa (Japanese encephalitis virus), relacionado a produção de arroz irrigado e a criação de porcos no sudeste asiático.

Como se sabe, o Brasil é referência mundial em controle sanitário, sendo que por ser um grande exportador o sistema regulatório brasileiro, organizado pelo Ministério da Agricultura e Pecuária, está entre os mais frequentemente auditados e monitorados no mundo. O rigor e a confiabilidade da inspeção sanitária garantem ao país a qualificação de referência no setor, permitindo a disputa pelos mercados mais seletivos e interessantes. 

Esta qualidade garante números superlativos no aspecto econômico. O Brasil está entre Brasil está entre os 5 maiores exportadores em cerca de 30 produtos  agrícolas, sendo que a agropecuária respondeu por cerca de US$ 45 bilhões das exportações em 2020 e há vários anos garante o saldo positivo da balança comercial (disponível  em:  https://www.cnnbrasil.com.br/business/brasil-esta-entre-os-5- maiores-exportadores-em-cerca-de-30-produtos-agricolas/).

Segundo dados da Associação Brasileira de Proteína Animal, um dos setores regulados pelo Projeto de Lei, somente este setor atualmente gera 4,1 milhões de empregos, contribuindo para que o Brasil seja o maior exportador de carne de frango, com volume de exportação, só em 2020, de 4,23 milhões de toneladas. A atuação do setor também contribui para que o país tenha alcançado o quarto lugar na produção e exportação mundial de carne suína, alcançando 1,02 milhão tonelada de carne exportada em 2020 e uma produção de 4,32 milhões de toneladas no mesmo período.(disponível em https://www.anffasindical.org.br/index.php/noticias/autocontrole/3296-anffa- sindical-debate-autocontrole-na-comissao-de-agricultura-da-camara).

A ausência da efetiva fiscalização estatal e/ou seu potencial esvaziamento, além de colocar em risco a saúde pública e dos trabalhadores poderá atingir os próprios negócios e a competitividade da agropecuária brasileira.
 

3.   CONCLUSÃO.


Por todo o exposto - e considerando os vícios de constitucionalidade material acima expostos -, o Ministério Público do Trabalho entende que a proposta em comento, na forma como exposta, ocasiona insegurança jurídica e consequências altamente danosas para a sociedade, oferecendo os presentes argumentos fáticos e jurídicos que alicerçam o seu posicionamento. 

Brasília/DF, 20 de junho de 2022.
 



ANDREA DA ROCHA CARVALHO GONDIM
PROCURADORA DO TRABALHO
COORDENADORA DA COORDENADORIA NACIONAL DE COMBATE ÀS 
IRREGULARIDADES TRABALHISTAS NA ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA DO MPT-
CONAP


MÁRCIA CRISTINA KAMEI LÓPEZ ALIÁGA
PROCURADORA DO TRABALHO
COORDENADORA DA COORDENADORIA NACIONAL DE DEFESA DO MEIO 
AMBIENTE DO TRABALHO DO MPT - CODEMAT


SANDRO EDUARDO SARDÁ 
PROCURADOR DO TRABALHO
GERENTE DO PROJETO NACIONAL DE ADEQUAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DO 
TRABALHO EM FRIGORÍFICOS


LEOMAR DARONCHO 
PROCURADOR DO TRABALHO
VICE GERENTE DO PROJETO NACIONAL DE ADEQUAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DO 
TRABALHO EM FRIGORÍFICOS 


LINCOLN ROBERTO NOBREGA CORDEIRO
PROCURADOR DO TRABALHO
VICE GERENTE DO PROJETO NACIONAL DE ADEQUAÇÃO DO MEIO AMBIENTE DO 
TRABALHO EM FRIGORÍFICOS

Anffa Sindical

ANFFA Sindical é o Sindicato Nacional dos Auditores Fiscais Federais Agropecuários
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