Artigo: Carta de Repúdio

Imagem de Anthony Arnaud por Pixabay


Por: Leandro d’Arc Moretti*

Em 21/03/2023, o ESTADÃO publicou uma matéria apresentando relato de produtores de queijo que receberam ações fiscais. Houve destaque, de um lado, para o investimento financeiro, em organização de instalações, em equipamentos e em procedimentos produtivos dos empresários. Do outro lado, foram enfatizadas as arbitrariedades que teriam sido cometidas durante uma apuração de denúncia por equipe de fiscalização de produtos de origem animal.

A publicação ilustrou o caso contando uma fofoca sobre um fiscal já falecido que seria maldoso com os produtores por ser infeliz no casamento.
O texto apresentou um questionamento retórico sobre a motivação para o fiscal da apuração de denúncia atual ter aplicado uma ação cautelar em queijos. Por conjectura, o motivo seria uma falta indolente de zelo, inerente a qualquer fiscal. Afirmou que os fiscais geralmente têm formação de veterinário cujo sonho seria passar em um concurso público, mas isso simplesmente como meio “para ter estabilidade a vida inteira”, já que aos fiscais seria necessária uma acomodação nos vai-e-vens da burocracia como reação à força da circunstância inescapável de terem de se frustrar com falta de estrutura e de condições de trabalho e assim não terem chance de evoluir profissionalmente. Desta maneira, seria impossível aos fiscais conseguir alcançar qualquer outro tipo de satisfação que não fosse com o revanchismo sádico de impor ações cautelares arbitrárias e indevidas em empresas fiscalizadas.

Mais recentemente, em 16/04/2023, o ESTADO DE SÃO PAULO, retomou o assunto “Guerra do queijo” cujo título destaca “queixas de perseguição e fiscal afastado”. Este novo texto, depois de cerca de um mês do primeiro, mostra a manutenção do interesse jornalístico e isso parece ser devido à temática de arbitrariedade envolvendo o serviço público.
Neste último texto, o ESTADÃO parece ter tido a intenção de dar voz ao lado da fiscalização além de considerar o lado dos produtores. Entretanto, a abordagem utilizada foi de certa forma desproporcional ao destacar as mazelas das empresas e apresentar um trecho minimalista atribuído ao Sindicato dos Médicos Veterinários em que este veio salientar (...) a importância desses profissionais que trabalham para garantir a consumidores um alimento seguro e com qualidade”.

Ao observar que as duas matérias do ESTADÃO podem levar a generalizações de desapreço a toda uma classe de profissionais da fiscalização higiênico-sanitária e tecnológica de produtos de origem animal, inclusive com potencial a agressões, é relevante apresentar uma crítica ao com a carta de repúdio abaixo:

Que as condutas não devam ser nem a mais nem a menos ninguém discorda e fica claro que o remédio não deve matar o doente porque o tratamento tem de ser dado a bem da vida. E o medicamento também tem de cumprir a dose mínima senão o paciente não melhora. Em linhas gerais, quero dizer que não podemos ser arbitrários nem omissos e isso vale para todos aspectos de nossas vidas, inclusive os profissionais.

Então não é correto vermos num periódico de grande circulação a notícia de que uma carreira inteira é indigna como se seus profissionais fossem arbitrários e seletivamente omissos.
Melhor seria um mundo em que não precisássemos de polícia nem de fiscalização e que a educação das pessoas por si isoladamente garantisse uma convivência sem conflitos, com desenvolvimento e paz social. Infelizmente, no mundo em que vivemos a sociedade está organizada num pacto em que as leis e normas existem para harmonização geral. E a fiscalização é assim: confiar eu confio, só que preciso checar. E daí com regra clara e divisão de atribuições entre fiscais e fiscalizados, literalmente “todo mundo” se beneficia.

É neste sentido que a fiscalização trabalha para atestar de forma isenta que são atendidos os quesitos técnicos necessários a proteção da saúde e interesses econômicos dos consumidores. Mas apenas quando são atendidos tais quesitos. A fiscalização tem o poder de polícia justamente para cercear liberdades (de propriedade, de comercialização, etc) dos produtores quando estas mesmas liberdades estão desalinhadas das normas, já que estas são geradas para proteção do bem comum.

Numa época em que tanto se exalta a ciência como norteadora de boas práticas é inegável reconhecer que as normas mais modernas para fiscalização de alimentos sejam pautadas na melhor ciência disponível como as emanadas pelos organismos internacionais de referência. Num procedimento de fiscalização avalia-se se o ente fiscalizado cumpriu as normas legais que, em última instância, representam a aplicação da ciência na demonstração de que os alimentos não representam riscos aos consumidores. Se o fiscalizado, entretanto, não tiver cumprido as normas vai receber ação fiscal. E não poderia ser diferente. Essa é a expectativa da sociedade que requer do Estado a proteção de seus interesses em relação aos alimentos que são fabricados por empresas da iniciativa privada. O fiscal então se mede e é medido com a mesma régua do “nem a mais nem a menos” de que ninguém discorda. Ele ou ela faz só o que tem de fazer, na medida certa, sem mais, sem menos. Não faz o que faz para prejudicar uma empresa ou um produtor. Quando aplica ação fiscal em uma má-empresa ou mau produtor que não está cumprindo as normas é para proteger o sistema de certificação em que a sociedade confia. E para fazer isso também se pauta na legislação para aplicar ação fiscal que é proporcional à falha.

Para produtores de alimentos as ações fiscais podem incluir a apreensão cautelar de produtos (para avaliações mais detalhadas que dirão se representam risco ao consumidor quanto à saúde pública ou fraude econômica), a condenação destes produtos quando oferecem risco ao consumidor, a interdição de instalações/suspensão de atividades/cancelamento de registro de estabelecimentos que imponham risco higiênico-sanitário, por exemplo.

É importante destacar a necessidade de tal poder de polícia ser exercido por servidores públicos concursados. Desde a promulgação da constituição de 1988 o ingresso no serviço público é feito por concurso para que seja possível selecionar os mais bem classificados como forma de atender a um princípio da própria constituição federal que é o da eficiência. Em linhas gerais isso quer dizer que no serviço público só podem ingressar os mais aptos (em certame público em que todos concorrentes têm as mesmas oportunidades).

Outros princípios da constituição de 1988, que são relevantes para o repúdio que se tem em ouvir dizer que a fiscalização é parcial, arbitrária e seletivamente omissa na ação fiscal de apreensão envolvendo produtos lácteos, são os da impessoalidade do serviço público e da legalidade. A impessoalidade implica a defesa do interesse público de maneira desacoplada a preferências pessoais, enquanto a legalidade quer dizer que o fiscal, como agente público, não pode usar de sua vontade própria, pois suas decisões devem ser todas baseadas em normas vigentes. O fiscal não pode fazer tudo que não for proibido, mas pode fazer apenas o que é permitido pelas normas.

Mas como em qualquer apuração, se o fiscal tiver atuado em desacordo com as normas ele deverá receber a penalidade cabível. Para isso existe o processo administrativo disciplinar que é conduzido como em qualquer sociedade civilizada com julgamento que considera ampla e defesa/contraditório.

Os concursos públicos para fiscais estão entre os mais concorridos do Brasil. Os desafios são enormes porque o Brasil tem uma agricultura pungente e assim novas empresas são registradas em grande escala o que demanda o desenvolvimento de ferramentas inteligentes de fiscalização no que o formato atual é calcado no risco de cada tipo de estabelecimento e de cada tipo de produto. Sendo associada à exigência de concurso público concorrido esta atividade desafiadora atrai para seus quadros pessoas competentes que são apaixonadas pela área dado o empenho na formação que é necessário para ingresso neste tipo de carreira.

Com estes argumentos eu gostaria de encerrar meus comentários dizendo que o fiscal não é um ser superior, muito menos um monstro burocrático insensível. Na inspeção higiênico-sanitária e tecnológica de queijos o fiscal é um médico veterinário que após estudar num curso de graduação de cinco anos pode ter feito outros cursos de especialização e de pós-graduação para então conseguir ser admitido num concurso público de elevada concorrência. Tal profissional deve ser respeitado pelo relevante papel que exerce ao certificar a confiabilidade dos sistemas produtivos nos quais se inclui aquele dos produtos lácteos citados.

A dignidade da carreira para alcance aos referidos objetivos institucionais de certificação higiênico-sanitária e de conformidade dos produtos agropecuários credencia tal profissional a fazer jus a um tratamento respeitoso no qual não se tolere incitações de “causos” de surras sofridas a partir de produtores violentos e nem que se julgue plausível a qualquer fiscal pautar-se em revanchismos pessoais para a sua conduta profissional. A resolução de dificuldades na fiscalização ocorre com o cumprimento dos quesitos sanitários e só isso. Não há espaço para a cultura do coronelismo, de que seria possível criar dificuldade para vender facilidade. A fiscalização é uma ação técnica pautada em normas legítimas e vigentes para todos. A imagem que pode ter sido construída socialmente de que todo servidor público seria improdutivo é anacrônica e incompatível com o princípio da eficiência que é exigido desde a constituição de 1988.

A liberdade de imprensa deve ser sempre festejada porque toda liberdade traz consigo responsabilidade. Responsabilidade é ter seriedade em tudo que se trata. Responsabilidade é ir do começo do problema até o final da solução. A responsabilidade de se ouvir todos os lados da história não pode ficar no ar, entre o começo do problema e sem sequer vislumbrar um início de solução como se viu da matéria publicada no Estadão (https://www.estadao.com.br/paladar/so-queijo/a-ressurreicao-de-266-kg-queijos-artesanais-paulistas-enterrados-vivos). É lamentável que a intenção jornalística tenha deixado de ouvir o lado da digna profissão das carreiras de fiscalização agropecuária que tanto faz para enaltecer o agronegócio brasileiro, garantindo sua sustentabilidade e projeção com foco na segurança de processos produtivos certificados.


*Auditor Fiscal Federal Agropecuário 
 


**Os artigos publicados não traduzem a opinião do Anffa Sindical. Sua publicação obedece ao propósito de estimular o debate dos temas sindicais e de refletir as diversas tendências do pensamento.

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